PARÁBOLA DE CERVANTES E DE QUIXOTE, de JORGE LUÍS BORGES – tradução de João Machado

(1899 – 1986)

 

Farto da sua terra de Espanha, um velho soldado do rei procurou alívio nas vastas geografias de Ariosto, naquele vale da lua onde se encontra o tempo desperdiçado nos sonhos, e no ídolo de ouro de Mafoma que roubou Montalbán.

Num suave engano a si mesmo, idealizou um homem crédulo que, perturbado pela leitura de maravilhas, deu em procurar proezas e encantamentos em lugares prosaicos que se chamavam El Toboso ou Montiel.

Vencido pela realidade, por Espanha, Don Quixote morreu na sua aldeia natal aí por 1614. Miguel de Cervantes pouco tempo lhe sobreviveu.

Para os dois, para o sonhador e para o sonhado, todo esse enredo foi a oposição de dois mundos: o mundo dos livros de cavalaria, e o mundo quotidiano e comum do século XVII.

Nunca suspeitaram de que os anos acabariam por limar a discórdia, nunca suspeitaram de que a Mancha e Montiel e a magra figura do cavaleiro seriam, para o porvir, não menos poéticas do que as etapas de Sinbad ou as vastas geografias de Ariosto.

Porque no princípio da literatura está o mito, e igualmente no fim.

 


Traduzi esta parábola de Borges da edição da Prosa Completa da Bruguera, Narradores de Hoy, Barcelona, 1980. No fim lê-se Clínica Devoto, enero de 1955.

Podem ver o texto em espanhol em:

http://estrolabio.blogs.sapo.pt/1379355.html

onde o inseri a 3 de Maio de 2011. Borges, lá no céu, e os seus herdeiros, cá na terra, perdoarão com certeza este devaneio com este pequeno e espantoso texto.

 

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