Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 3 — Texto 15. Depois da explosão: Economistas defensores dos mercados livres fazem um exame de consciência – e apontam o dedo (1/2). Por John Cassidy

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 3 – Das harmonias universais decretadas pela Escola de Chicago à violência das crises atuais – Reflexões sobre os Nobel ou nobelizáveis da Escola de Chicago

Nota de editor:

Devido à sua extensão, este texto é publicado em 2 partes. Hoje a primeira.

Seleção e tradução de Júlio Marques Mota

9 min de leitura

Texto 15 – Depois da explosão: Economistas defensores dos mercados livres fazem um exame de consciência – e apontam o dedo. (1/2)

 Por John Cassidy

Publicado por  em 3 de Janeiro de 2010 (original aqui)

 

Alguns visitantes do Everett M. Dirksen United States Court House, no centro de Chicago, vêm em busca de justiça, outros de clemência. Eu fui à procura de apostasia. Depois de passar pela segurança e apanhar o elevador até o vigésimo sétimo andar, fui conduzido aos aposentos do juiz Richard A. Posner, o famoso e prolífico jurista, professor de direito, autor e, ultimamente, blogueiro, que há décadas é uma importante figura na conservadora Escola de Economia de Chicago. Sentando o seu corpo magro num sofá de couro que lhe proporcionava uma visão panorâmica do Lago Michigan, Posner discorreu sobre a crise económica global que começou em 2007 e sobre o fracasso de muitos economistas em prevê-la. Com voz suave, disse-me: “Acho que o desafio é para a profissão de economista como um todo, mas para a Escola de Chicago acima de tudo”.

Richard A. Posner chocou a Escola de Chicago ao aderir ao renascimento keynesiano. Ilustração de Finn Grafi

Advogado por formação, Posner também é um dos escritores de economia mais influentes do país. No seu tratado de 1973, “Economic Analysis of Law,” ele aplicou as máximas da economia de livre mercado ao tribunal, argumentando que a aplicação da eficiência económica deveria ser o objetivo principal dos juízes. Posner, que na época era um jovem professor da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, ajudou a criar o movimento de direito e economia, que povoou muitos tribunais dos Estados Unidos com juízes de mentalidade semelhante. Em 1981, Ronald Reagan indicou-o para o Tribunal de Apelações do Sétimo Circuito, e desde então ele escreveu mais de duas dúzias de livros, nomeadamente um defendendo a decisão do Supremo Tribunal de 2000 que deu a George W. Bush a presidência.

No início deste ano, Posner publicou “A Failure of Capitalism”, no qual ele argumenta que a política monetária frouxa e a desregulamentação ajudaram a provocar a atual crise. “Estamos aprendendo com isso que precisamos de um governo mais ativo e inteligente para evitar que o nosso modelo de economia capitalista saia dos trilhos”, escreve Posner. “O movimento para desregulamentar o setor financeiro foi longe demais ao exagerar a resiliência – os poderes de auto-correção – do capitalismo dos mercados livres (laissez-faire)”. Posner também acusa economistas profissionais, nomeadamente alguns dos seus colegas de Chicago, de estarem “adormecidos com a mão no interruptor”. Em setembro, Posner apresentou-se como keynesiano; num longo artigo no The New Republic, ele saudou “The General Theory of Employment, Interest, and Money”, que John Maynard Keynes publicou em 1936, como uma “obra-prima”, dizendo que “apesar de sua antiguidade, é o melhor guia que nós temos para a crise.”

No que diz respeito aos atos de traição, isso foi mais ou menos semelhante a Johnny Damon raspando a barba, abandonando a Red Sox Nation [n.t. equipa profissional de beisebol de Boston] e juntando-se aos Yankees. Desde que Milton Friedman, George Stigler e outros fundaram a Escola de Chicago, nas décadas de 1940 e 1950, um de seus objetivos foi substituir o keynesianismo, e esta Escola teve grande sucesso. Durante três décadas após a Segunda Guerra Mundial, a economia foi dominada por ideias keynesianas sobre como é que o governo deveria usar a política monetária e orçamental para evitar recessões. Desde 1974, no entanto, mais de uma dúzia de estudiosos associados à Universidade de Chicago receberam o Prémio Nobel de Ciências Económicas; nas áreas de regulamentação, comércio, lei antitrust, impostos, taxas de juros e bem-estar, o pensamento de Chicago influenciou muito a formulação de políticas nos Estados Unidos e em muitas outras partes do mundo. Keynes parecia ter sido relegado para a história.

Mas no ano seguinte ao colapso, o nome de Keynes parecia estar em toda a parte; vários livros foram publicados sobre ele e os formuladores de políticas passaram novamente a defender as suas ideias. Até a eclosão da crise bancária, Posner não se preocupou em interrogar-se sobre a “A Teoria Geral”. Quando pegou no livro, ficou muito impressionado pelas perspetivas económicas e os detalhes práticos que continha. “Mesmo que seja um pouco impreciso – não coloca todos os pontos nos ‘i’s e nem cruza todos os ‘t’s”, a economia keynesiana “parece ter mais compreensão do que está a acontecer na economia”, diz-me Posner. Grande parte da economia moderna, em contraste, é “por um lado, muito matemática e, por outro lado, está cheia de credulidade sobre o poder autorregulador dos mercados. Essa combinação é perigosa.”

Em “A Failure of Capitalism “, Posner cita vários economistas, entre os quais Robert Lucas, um dos sucessores mais eminentes de Friedman, e John Cochrane, outro proeminente economista de Chicago, por não terem compreendido a magnitude da crise do subprime. Durante a nossa conversa, Posner questionou toda a metodologia de que Lucas e os seus colegas foram pioneiros. As suas noções básicas eram a hipótese dos mercados eficientes, que diz que os preços das ações e outros ativos financeiros refletem com precisão todas as informações disponíveis sobre os fundamentais económicos e a teoria das expectativas racionais, que postula que indivíduos e empresas são tomadores de decisão hiper-inteligentes que têm um modelo correto da economia nas suas cabeças. Na teoria das expectativas racionais, a economia é representada de forma muito simplificada e livre. Muitos modelos, incluindo alguns deles baseados no FED e outros bancos centrais, nem sequer apresentam bancos ou outros intermediários financeiros. Na visão de Posner, teorias mais antigas e menos dogmáticas explicavam melhor como os problemas no setor financeiro arrastaram o resto da economia. “Claro, você tem que saber muito sobre bancos, e esse não foi o caso com os economistas”, disse ele. “Estranho, de certa forma, porque os macroeconomistas e os teóricos financeiros sempre se interessaram pelo setor bancário, mas acho que eles realmente não entendiam muito sobre isso.”

Embora Posner fosse rigorosamente muito educado, detetei uma ponta de raiva nos seus comentários sobre a profissão de economia e a sua adoção de teorias tão manifestamente irrealistas. Eu perguntei o que é que ele achava que os economistas tinham aprendido nos últimos dois anos. “Bem, uma possibilidade é que eles não tenham aprendido nada”, respondeu ele muito lentamente. “Porque, como é que devo dizer isso, porque os corretivos de mercado funcionam muito lentamente ao lidar com mercados académicos. Os professores são permanentes. Eles têm muitos estudantes de pós-graduação no pipeline que precisam de obter o seu doutoramento. Eles têm técnicas que eles conhecem e com as quais estão à vontade. É preciso muito para expulsá-los de sua maneira acostumada de fazer negócios.”

Depois de deixar o escritório de Posner, dirigi-me para o sul até ao campus da Universidade de Chicago, Hyde Park, que por mais de meio século tem sido um próspero centro de pensamento conservador e de debates, abrigando pensadores tão diversos quanto Leo Strauss e acólitos em filosofia política, Albert Wohlstetter e seus companheiros Cold Warriors em estratégia nuclear, e Posner, Richard Epstein, e outros em questões jurídicas. O arquétipo intelectual de Chicago, encarnado por Ravelstein, o professor de filosofia política que aparece no romance homónimo de Saul Bellow de 2000, combinou o interesse por grandes ideias com o empenhamento urgente nos problemas atuais. No outono passado, quando a crise financeira se intensificou, muitos economistas de Chicago interromperam as suas próprias pesquisas para se concentrarem no momento. “Todos aqui foram surpreendidos pela magnitude do que aconteceu”, disse-me James Heckman, cujo trabalho em economia do trabalho e estatística lhe rendeu uma parte do Prémio Nobel de 2000. “Mas não foi só aqui. Toda a profissão foi surpreendida.” Conferências foram organizadas, seminários foram realizados e refeitórios de professores estavam cheios de debates vigorosos. Uma sessão de painel em que meia dúzia de proeminentes economistas de Chicago discutiram “O Futuro dos Mercados” atraiu mais de mil pessoas para um Sheraton no centro da cidade. “Todo mundo se envolveu”, disse Eugene Fama, um veterano especialista em finanças da Booth School of Business da universidade. “Todo o mundo tem um remédio. Não confio em nenhuma das suas receitas.”

No decurso de alguns dias, falei com economistas de vários ramos da economia. A reacção geral que encontrei pôs-me a pensar no que aconteceu à cosmologia depois do astrónomo Edwin Hubble, em 1929, ter descoberto que o universo estava em expansão, e que era muito maior do que os cientistas tinham acreditado. A profissão caiu em tumulto. Alguns físicos mantiveram-se fiéis às teorias existentes, que colocavam um universo estável. Outros, incluindo Albert Einstein, tentaram adaptar os modelos antigos aos dados de Hubble. Outros ainda tentaram apresentar um novo relato de como as galáxias se formaram; foi este esforço que acabou por produzir a teoria do big bang.

Fama, que entrevistei no seu gabinete na Booth School, estava firmemente no campo de negação. Um homem de setenta e poucos anos, de cabelo cortado e com uma camisa florida de manga curta, parecia mais um marine reformado em Miami Beach do que um dos fundadores das finanças modernas. A partir dos anos sessenta e setenta, Fama, que detém o título de Robert R. McCormick Distinguished Service Professor of Finance, apresentou a hipótese dos mercados eficientes, que sustentou a desregulamentação do sistema bancário defendida por Alan Greenspan e outros. Perguntei-lhe como é que esta teoria se tinha saído na recente crise, que muitos, incluindo eu próprio, descreveram como um exemplo de ineficiência grosseira. Fama estava tranquilo. “Penso que se saiu bastante bem neste episódio”, disse ele, com traços da sua voz nativa em Boston audíveis. “Os preços das ações descem tipicamente antes de uma recessão e num estado de recessão. Esta foi uma recessão particularmente severa. Os preços começaram a diminuir antes de as pessoas reconhecerem que se tratava de uma recessão e depois continuaram a diminuir. Era exatamente isso que se esperaria se os mercados são eficientes”.

A ênfase que Fama colocou na bolsa de valores surpreendeu-me. Certamente, disse eu, tínhamos experimentado uma gigantesca bolha de crédito, que acabou por rebentar. “Não sei o que significa uma bolha de crédito”, respondeu Fama, com os seus olhos brilhando. “Eu nem sequer sei o que significa uma bolha. Estas palavras tornaram-se populares. Acho que não têm qualquer significado”. Fama não estava a brincar. Ele ficou tão cansado de ver a palavra “bolha” no The Economist que não renovou a sua assinatura. “As pessoas tornaram-se completamente desleixadas”, prosseguiu ele. “As pessoas saltaram para o comboio da culpa dos mercados financeiros. Posso contar muito facilmente uma história em que os mercados financeiros foram uma vítima da recessão, não uma causa da mesma”.

O cerne do argumento do Fama era que o abrandamento económico era anterior ao colapso do mercado hipotecário, em 2007. À medida que o crescimento do emprego e dos rendimentos abrandou, disse ele, alguns proprietários de casas não puderam fazer os seus pagamentos mensais, especialmente os mutuários das hipotecas subprime que tinham contraído as hipotecas mais arriscadas. Com o aumento dos atrasos de pagamentos e de execuções hipotecárias a aumentar, os bancos e outras instituições financeiras que tinham investido fortemente em títulos hipotecários subprime sofreram grandes perdas, o que os levou a reduzir os seus empréstimos a outros. “Como consequência, tivemos uma chamada crise de crédito”, disse Fama. “Não foi realmente uma crise de crédito: foi uma crise económica”.

A história de Fama era logicamente consistente, mas parecia conter uma grande lacuna. Se a explosão da hipoteca não causou a recessão, o que é que a provocou? Quando levantei esta questão, Fama riu-se. “É aí onde a economia se foi sempre abaixo, se desmoronou”, disse ele. “Não sabemos o que causa as recessões. Agora, não sou um macroeconomista, e não me sinto mal com isso”. Voltou a gargalhar. “Nunca soubemos. Os debates prosseguem até hoje sobre o que é que causou a Grande Depressão”.

Uma teoria da recessão económica que assenta em inexplicáveis giroscópios na economia não pareceu um grande avanço, mas Fama pareceu contente com ela. Insistiu que o verdadeiro culpado da confusão das hipotecas foi o governo federal, que instruiu Fannie Mae e Freddie Mac a comprar hipotecas subprime e títulos hipotecários. “Isso foi um fracasso do governo; isso não foi um fracasso do mercado”, disse Fama. Segundo os números citados no Washington Post, as compras de Fannie e Freddie representaram menos de um terço do mercado de subprime no auge do boom. Quando salientei que os investidores privados compraram a maioria dos títulos subprime emitidos, e as duas grandes empresas hipotecárias apoiadas pelo governo consideravelmente menos, Fama disse simplesmente: “Quanto é que é preciso?”

Para além de acusar o governo de provocar o problema de subprime, Fama argumenta que falhou na sua gestão da crise financeira do Outono passado. Em vez de socorrer a A.I.G., o Citigroup, e outras empresas, Fama diz que o Departamento do Tesouro e a Reserva Federal deveriam ter-lhes permitido ir à falência. “Deixem-nos então ir para a falência”, disse ele, com outra gargalhada. “Deixamos o Lehman falir. Deixamos o Washington Mutual falir. Estas eram grandes instituições financeiras. Algumas não deixámos fracassar. Para mim, parece que não havia muita rima ou razão para isso”. Fama admitiu que todo o sistema financeiro poderia muito bem ter fechado durante um período, mas expressou confiança em que investidores e bancos saudáveis teriam intervido para comprar os bons activos das empresas em colapso, e que, dentro de uma semana ou duas, o sistema estaria novamente a funcionar. “De qualquer modo, o sistema parou praticamente durante uma ou duas semanas”, disse ele. “Os mercados de crédito pararam durante mais de uma semana ou duas”.

Fama não foi menos genial no que diz respeito a Posner. “Ele não é um economista”, disse ele. “Ele é um especialista em direito e economia. Estamos a falar de macroeconomia e finanças”. Mesmo quando referi Paul Krugman, que tinha criticado o pensamento dos mercados eficientes num ensaio recente da revista Times Magazine, a equanimidade do Fama foi inabalável. “A minha atitude é esta”, disse ele. “Se estás a ser atacado por Krugman, deves estar a fazer algo correto”.

No escritório ao lado do de Fama, encontrei outro verdadeiro crente, John Cochrane. Durante a turbulência financeira do ano passado, Cochrane, que por acaso é genro de Fama, ajudou a organizar uma petição contra o Programa de Alívio de Ativos Turbulentos do Departamento do Tesouro no valor de sete mil milhões de dólares; mais de quarenta economistas de Chicago assinaram-no. “O que há sobre acontecimentos recentes que o levariam a dizer que os mercados são ineficientes?” disse-me ele. “O mercado colapsou. Ao que eu diria, tivemos os acontecimentos de Setembro passado em que o Presidente aparece na televisão e diz que os mercados financeiros estão perto do colapso. Em que planeta é que os mercados não se desmoronam depois disso”? No início deste ano, Cochrane escreveu vários artigos argumentando que o pacote de estímulos da administração Obama não tinha uma base teórica. Quando mencionei Posner e o relançamento keynesiano mais amplo, ele insistiu que a economia keynesiana tinha sido flagelada durante décadas com inconsistências lógicas, que os acontecimentos recentes nada tinham feito para eliminar. “Deitámo-la fora por uma razão”, disse ele. “Não funcionou nos dados. Quando a inflação chegou nos anos setenta, isso foi um grande fracasso da economia keynesiana. ”

 

(continua)

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O autor: John Cassidy [1963-] é jornalista do The New Yorker e colaborador frequente da New York Review of Books. Ele é o autor de How Markets Fail and Dot.con: How America Lost Its Mind and Money in the Internet Era and lives in New York City.

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