CORREIO DA CIDADANIA – HAITI: REBELIÃO POPULAR EM MARCHA – por RAÚL ZIBECHI

OBRIGADO A RAÚL ZIBECHI, RAPHAEL SANZ E AO CORREIO DA CIDADANIA

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Raúl Zibechi, 13 de Fevereiro de 2016

Haiti

“Surgiram organizadores no campesinato, nos bairros e sindicatos, já não são apenas os estudantes que saem às ruas, senão o povo de forma massiva forçou a suspensão do segundo turno, freando o golpe eleitoral. Mas agora resta ver como será composto do governo de transição. Martelly e os presidentes das câmaras querem estar neste governo. O grupo de oito partidos de oposição afirma que o presidente da Suprema Corte de Justiça assuma a presidência, e a terceira posição é um governo de consenso de todas as forças que se mobilizaram contra a ocupação. A crise entrou na fase de luta pelo poder”.

A crise haitiana é muito mais profunda do que aquilo que revela a fraude eleitoral, e só pode ser explicada a partir da ocupação militar do país, do aprofundamento da dependência e da crescente pobreza das maiorias. A atualização do passado colonial agudizou todos os problemas da nação mais golpeada do continente.

“A rebelião se sustenta em uma nova consciência e em novas organizações nascidas sob a ocupação”, disse à La Brecha, Henry Boisrolin, coordenador do Comitê Democrático Haitiano, residente na Argentina. Desse modo o ativista explica as multitudinárias mobilizações que forçaram a suspensão indefinida de um questionado segundo turno eleitoral. O problema é que o governo de Michel Martelly finalizou seu período constitucional no último dia 7 de fevereiro, domingo, deixando um vazio presidencial sem precedentes na história do Haiti.

“A crise haitiana não se reduz a uma crise eleitoral, ela é muito mais profunda. Se relaciona com o fracasso da ocupação, que não pôde resolver nenhum problema do povo. O sistema de ocupação colonial recorreu historicamente a ditaduras, golpes de Estado e massacres, mas agora o sistema não pode se reproduzir porque houve um salto qualitativo da consciência e da organização nos últimos 30 anos, logo que Duvalier foi derrotado”, sintetiza Boisrolin.

Em sua opinião, um sistema alicerçado na corrupção e na violência está sendo travado pela sociedade haitiana, que compreendeu que “para resolver seus problemas é preciso por fim à ocupação militar que já leva 11 anos”. Nesse período houve eleições com cerca de 75% de abstenções, e também a reconstrução do país posterior ao terremoto de 2010, que foi um “grande negócio para as multinacionais e ONGs”. Sustenta que se chegou a uma situação na que “os de cima não podem continuar vivendo como antes e os de baixo não querem seguir vivendo assim”.

Um problema chamado Martelly

“A partir da derrubada de Jean-Claude Duvalier, em 1986, o sistema político haitiano tem gravitado entre forças que o empurram ativamente na direção de um regime democrático, e outras que incentivam o arraigo de uma cultura política autocrática e adversa a um Estado de Direito”, é possível ler estas linhas em um editorial da imprensa dominicana (Diário Libre, 5-IX-15).

Desde a deposição de Jean Bertrand Aristide, o primeiro presidente eleito democraticamente, ainda houve um golpe “promovido pela burguesia, a diáspora e os altos mandos militares haitianos”. E com forte apoio dos Estados Unidos, a situação haitiana se caracterizou pela instabilidade. Logo após a intervenção militar estadunidense, um segundo golpe contra a segunda presidência de Aristide, é que a intervenção da Missão de Estabilização das Nações Unidas (Minustah), em 2005, chega ao governo Martelly, sustentado pelas mesmas forças.

O presidente, que assumiu logo depois de um “infame segundo turno eleitoral”, em 2010, nunca negou seus vínculos com o regime de François Duvalier, assim como “sua inquestionável cumplicidade com a extorsão e aprisionamento de figuras da oposição como André Michel, além de sua amizade com Woodley Théard (aliás, “Sonson La Família”, líder de notável gangue de sequestradores). Soma-se o desinteresse do seu governo pela realização de eleições legislativas e municipais, pendentes há mais de quatro anos” (Diário Libre, 5.IX-15).

Mas o mais escandaloso ainda é o silêncio da comunidade internacional. Especialmente Estados Unidos e França, cúmplices do regime de Duvalier, dos golpes de Estado, da repressão e da fraude permanente, senão sobretudo dos governos progressistas latino-americanos cujas forças armadas integram as tropas de ocupação.

Foi a massiva irrupção do povo haitiano que levou à OEA e vários governos a interessarem-se por uma realidade que acreditavam estar sob controle. Nesta irrupção faz um importante papel a crise econômica, com forte desvalorização da moeda de cerca de 80%, “com enorme carência nos dez departamentos”, segundo Boisrolin. Ao que deve somar-se a uma epidemia de cólera trazida por soldados da Minustah e que teve 9 mil mortos e 900 mil infectados, agravada pela expulsão de haitianos da República Dominicana, onde ousam buscar acolhida e trabalho. “O governo não dá saída a nenhum problema, e ainda há um desperdício enorme, que sob Martelly cresceu de modo exponencial”.

Luta por poder

Como é comum dizer nesses casos, a crise econômica se transforma em crise política pela emergência dessa “nova consciência” na sociedade haitiana, da que participam inclusive setores médios e parte da burguesia que compreende a importância da soberania nacional. “Isto não é uma plantação somente da esquerda, senão da imensa maioria dos haitianos”, afirma o coordenador do Comitê Democrático.

Todos os organismos de observação haitianos reconhecem que nas eleições de 9 de agosto houve fraude, ao que alguns assimilam a um golpe de Estado a favor do partido do presidente. “Estados Unidos e Brasil querem que se aceite que houve irregularidades, mas como são ‘eleições à haitiana’, termo que revela seu racismo, deveriam ser válidas. Não pensavam que o povo haitiano teria a capacidade de frear o segundo turno”, dispara Boisrolin.

Este mês está sendo um momento-chave, já que se impõe um governo de transição cuja correlação de forças decidirá o futuro imediato do país. A proposta das forças populares que vieram a se mobilizar consiste em fazer conselhos abertos para que a população tome a iniciativa e consiga evitar que seu futuro se decida, uma vez mais, entre quatro paredes. “Se põe o Martelly ou qualquer um de seus amigos em um governo de transição não vai durar nem um mês”, antecipa Boisrolin.

O novo ingrediente está no fato de que foram registrados nos últimos anos um crescimento exponencial das forças anti-imperialistas que reivindicam o fim da ocupação e a não ingerência, o que levou muitos setores populares, incluindo a Igreja Católica, a rechaçar reuniões com a OEA. Após 11 anos de ocupação querem resolver os problemas entre haitianos.

Boisrolin define a nova conjuntura em um apertada síntese: “surgiram organizadores no campesinato, nos bairros e sindicatos, já não são apenas os estudantes que saem às ruas, mas o povo de forma massiva que forçou a suspensão do segundo turno, freando o golpe eleitoral. Agora resta ver como será composto do governo de transição. Martelly e os presidentes das câmaras querem estar neste governo. O grupo de oito partidos de oposição afirma que o presidente da Suprema Corte de Justiça assuma a presidência, e a terceira posição é um governo de consenso de todas as forças que se mobilizaram contra a ocupação. A crise entrou na fase de luta pelo poder”.

Nota:

Neste domingo, 14 de fevereiro, a Assembleia Nacional haitiana se reunirá para definir o novo presidente, provisoriamente. Eleito, terá a tarefa de organizar eleições após 120 dias de mandato. A oposição contesta a fórmula.

 

Raúl Zibechi é jornalista e cientista político uruguaio

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania.

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Ver o original no Correio da Cidadania em:

http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=11422:2016-02-13-13-45-44&catid=72:imagens-rolantes

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