Teoria e Política Económica: os grandes confrontos de ontem, hoje e amanhã, também – uma homenagem ao Joaquim Feio — Capítulo 2 — Texto 20. Ler Piero Sraffa é necessário para compreender a economia. Por Andrea Galeotti

Reflexos de uma trajetória intelectual conjunta ao longo de décadas – uma homenagem ao Joaquim Feio

 

Capítulo 2 – De Sraffa à necessidade de romper com o pensamento económico dominante. As grandes questões da macroeconomia

Seleção e tradução de Francisco Tavares

5 min de leitura

Texto 20 – Ler Piero Sraffa é necessário para compreender a economia

 Por Andrea Galeotti

Publicado por em 19 de Novembro de 2020 (original aqui)

 

 

Há 60 anos entrou nas livrarias Produção de mercadorias por meio de mercadorias”, obra fundamental de Piero Sraffa. Não nos deteremos no papel crucial que Sraffa desempenha na crítica da teoria marginalista e na controvérsia sobre o capital, também conhecida como “controvérsia entre os dois Cambridge”.

Este é justamente o aspecto pelo qual ele é mais famoso, apesar da condenação da contribuição sraffiana para a teoria económica pela chamada teoria dominante (leia-se, marginalista), como escreveu (talvez demasiado) pessimisticamente Giorgio Lunghini em ” Conflitto Crisi Incertezza” [1]. Com efeito, é provavelmente esta a razão que induz cada um de nós a estudar Sraffa.

No entanto, pretendemos aqui sublinhar um outro aspecto da actualidade imortal da contribuição de Sraffa. Com efeito, a nossa reflexão enquadra-se perfeitamente nos debates que, por uma questão de brevidade, podemos agrupar numa grande macrocategoria: definições e métodos da ciência económica.

Nas suas “Palestras avançadas sobre a teoria do valor” [2], antes de passar diretamente para o estudo da teoria do valor, Sraffa considera apropriado fazer aos seus alunos uma introdução mais genérica. Isto nada mais é do que uma premissa metodológica fundamental, pelo menos de acordo com Sraffa, para empreender o estudo daquilo que antes, e hoje cada vez menos, era geralmente definido como economia política.

Primeiro, diz Sraffa, “para compreender a moderna teoria do valor é necessário conhecer a história” (D2.4.3.F. 1). Mais precisamente, Sraffa sugere duas razões principais pelas quais a história da teoria do valor (leis, história da economia política) deve ser estudada. A primeira, que considera óbvia, é a necessidade de conhecer as suas origens. A segunda, e mais relevante, é que apenas um estudo de sua história permite uma compreensão consistente e completa do próprio significado da teoria.

O estudo da origem e evolução das doutrinas económicas, segundo Sraffa, não é tarefa exclusiva dos historiadores do pensamento económico. A história da economia política equivale, como a economia dominante sugere frequentemente, a preocupar-se com curiosidades. Pelo contrário, é – ou pelo menos deveria ser – um pré-requisito essencial de qualquer análise económica.

Como Sraffa comenta, qualquer teoria está inevitavelmente ancorada nas suas origens:

As teorias económicas, antigas ou modernas, não surgem simplesmente como resultado de mera curiosidade intelectual […]. Surgem de problemas práticos que afectam a comunidade e necessitam de uma solução.” (D2. 4. 3.F. 2)

Sendo concebidas como teorias e não como meras crenças (ou opiniões, ou conjecturas), então, os argumentos que propõem para resolver tais problemas de natureza prática (e sugerir soluções) são apoiados – e protegidos – por uma forma de universalidade ou, mais modestamente, de generalização:

“Os interesses opostos apoiam uma solução ou outra e adotam argumentos teóricos ou universais para provar que a solução que propõem está em conformidade com as leis naturais, ou que seria implementada no interesse público, ou no interesse da classe dominante ou qualquer que seja a ideologia dominante num determinado momento”. (D2. 4. 3.F. 2)

No entanto, se a origem de uma teoria está enraizada em preocupações de natureza prática, o mesmo não pode ser afirmado da evolução subsequente da teoria. O economista (ou estudante), que empreende o estudo de uma determinada teoria, será confrontado com algo que já passou por vários estágios de desenvolvimento e, especialmente, atingiu algum grau de generalidade (para não dizer cientificidade, um termo que para as ciências sociais deve ser usado com ponderação adequada). A partir daqui, continua Sraffa, torna-se perigosamente demasiado fácil ignorar (ou simplesmente esquecer) a ligação entre uma dada teoria e a prática de donde se originou historicamente:

Uma vez que elas se originaram … as teorias são transformadas e desenvolvidas de tal forma que se tornam, em certa medida, independentes dos interesses práticos de que se originaram; … na maioria dos casos, uma teoria inicialmente utilizada para apoiar uma determinada política assume gradualmente um carácter científico, ou seja, desvincula-se do problema prático de que se originou. Mas precisamente por esta razão a teoria adquire maior autoridade e é considerada como o resultado de uma investigação imparcial“. (D2. 4. 3.F. 2)

É a partir dessa suposta autoridade, gradualmente consolidada através da construção de um aparelho científico-teórico, que se desencadeia um círculo vicioso: é precisamente a essa “cientificidade” que, de facto, se recorre sempre que se quer apoiar ou se opor a uma determinada política. Isso gera uma dinâmica pela qual a teoria retorna à praxis mas com uma acrescida autoridade que a torna mais eficaz nos debates públicos porque é agora apresentada como um conjunto imparcial de “leis naturais” da economia desprovidas de juízos de valor.

Naturalmente, esta mesma dinâmica legitima – e é frequentemente utilizada para legitimar – a redução da história da economia política a um mero “registo de uma série de erros que foram corrigidos com êxito” (D2.4.3.F. 1).

Pelo contrário, com esta introdução à teoria do valor, Sraffa pretende sublinhar que a ciência económica é uma ciência social. A consolidação da teoria marginalista como a teoria dominante desde a segunda metade do século XIX não deve, portanto, ser entendida como a solução para “uma série de erros” presentes num Quesnay, num Smith ou num Ricardo.

Trata-se, de facto, da emergência de uma outra teoria económica, de uma diferente teoria do valor, que se funda e se desenvolve lakatosianamente em torno de um núcleo alternativo [3]. Apesar da sua comum denominação de teoria neoclássica, que implicitamente sugere uma certa continuidade e desenvolvimento cumulativo da teoria económica como ciência natural, a teoria marginalista, como preferimos chamá-la, não torna o estudo da economia política clássica supérfluo ou irrelevante.

E somos recordados disso precisamente por Sraffa, que, com a sua crítica [4], conseguiu demonstrar rigorosamente como teoricamente infundado o núcleo da teoria marginalista.

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Notas

[1] Lunghini, G. (2012) Conflitto Crisi Incertezza. La teoria dominante e le teorie alternative. Torino: Bollati Boringhieri. (pag. 86).

[2] Lectures on advanced theory of value given to students undertaking the economics tripos. Disponível em https://mss-cat.trin.cam.ac.uk/manuscripts/uv/view.php?n=Sraffa.D2.4#?c=0&m=0&s=0&cv=0&xywh=-937%2C-138%2C5381%2C2755. As citações posteriormente relatadas são traduzidas do inglês pessoalmente pela autora, que se declara a única responsável por quaisquer erros. O leitor interessado pode referir-se directamente ao original.

[3] Para uma breve introdução às premissas teóricas subjacentes à abordagem marginalista, ver https://kriticaeconomica.com/alle-radici-della-teoria-marginalista-una-nota-teorica-parte-1/.

[4] As duas principais críticas à teoria marginalista que encontramos em Sraffa, P. (1960) “Production of commodities by me means of commodities” são:

– o aprofundamento inverso do capital [isto é, a taxa de juro alta (baixa) pode corresponder um rácio capital trabalhador alto (baixo)];

– o retorno das técnicas da técnica; uma técnica para produzir dado produto pode ser escolhida a dada taxa de juro alta, não ser selecionada para um dado conjunto de taxas de juro mais baixas , e voltar a ser selecionada para outras taxas de juro ainda  mais baixas. Daí a expressão retorno das técnicas.

 


A autora: Andrea Galeotti é doutoranda em Economia na Universidade de Siena. É aluna do Collegio Ghislieri, é licenciada em Filosofia (UniPv) e Mestre em Economia (UniSi). Ele lida com a teoria económica e a história da economia política.

 

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