As tensões da modernidade (9) – Boaventura de Sousa Santos

 

(Continuação)

 

Por outro lado, e inversamente, visto a partir do topos dos direitos humanos, o  dharma também é incompleto, dado o seu enviesamento fortemente não-dialéctico a favor da harmonia, ocultando assim injustiças e negligenciando totalmente o valor do conflito como caminho para uma harmonia mais rica. Além disso, o dharma não está preocupado com os princípios da ordem democrática, com a liberdade e a autonomia, e negligencia o facto de, sem direitos primordiais, o indivíduo ser uma entidade demasiado frágil para evitar ser subjugado por aquilo que o transcende. Além disso, o dharma tende a esquecer que o sofrimento humano possui uma dimensão individual irredutível: não são as sociedades que sofrem, mas sim os indivíduos.

 

Num outro nível conceptual, pode ser ensaiada a mesma hermenêutica diatópica entre o topos dos direitos humanos e o topos da umma na cultura islâmica. Os passos do Corão em que surge a palavra umma são tão variados que o seu significado não pode ser definido com rigor. O seguinte, porém, parece ser certo: o conceito de umma refere-se sempre a entidades étnicas, linguísticas ou religiosas de pessoas que são o objecto do plano divino de salvação. À medida que a actividade profética de Maomé foi progredindo, os fundamentos religiosos da umma tornaram-se cada vez mais evidentes e, consequentemente, a umma dos árabes foi transformada na umma dos muçulmanos. Vista a partir do topos da umma, a incompletude dos direitos humanos individuais reside no facto de, com base neles, ser impossível fundar os laços e as solidariedades colectivas sem as quais nenhuma sociedade pode sobreviver, e muito menos prosperar. Exemplo disto mesmo é a dificuldade da concepção ocidental de direitos humanos em aceitar direitos colectivos de grupos sociais ou povos, sejam eles as minorias étnicas, as mulheres, as crianças ou os povos indígenas. Este é, de facto, um exemplo específico de uma dificuldade muito mais ampla: a dificuldade em definir a comunidade enquanto arena de solidariedades concretas, campo político dominado por uma obrigação política horizontal. Esta ideia de comunidade, central para Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, que reduziu toda a complexidade societal à dicotomia Estado/sociedade civil.

 

Mas, por outro lado, a partir do topos dos direitos humanos individuais, a umma sublinha demasiado os deveres em detrimento dos direitos e, por isso, tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo inadmissíveis, como a desigualdade entre homens e mulheres ou entre muçulmanos e não-muçulmanos. A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao facto de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada.

 

O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica desenvolve-se tanto na identificação local como na inteligibilidade translocal das incompletudes. Um bom exemplo de hermenêutica diatópica entre a cultura islâmica e a cultura ocidental no campo dos direitos humanos é dado por Abdullahi An-na’im (1990; 1992). Existe um longo debate acerca das relações entre islamismo e direitos humanos e da possibilidade de uma noção islâmica de direitos humanos. Este debate abrange um largo espectro de posições e o seu impacto ultrapassa o mundo islâmico. Embora correndo o risco de excessiva simplificação, duas posições extremas podem ser identificadas neste debate. Uma, absolutista ou fundamentalista, é sustentada por aqueles para quem o sistema jurídico religioso do Islão, a Shari’a, deve ser integralmente aplicado como o direito do Estado islâmico. Segundo esta posição, há inconsistências irreconciliáveis entre a Shari’a e a concepção ocidental dos direitos humanos, e sempre que tal ocorra a Shari’a deve prevalecer. Por exemplo, relativamente ao estatuto dos não-muçulmanos, a Shari’a determina a criação de um Estado para muçulmanos que apenas reconhece estes como cidadãos, negando aos não-muçulmanos quaisquer direitos políticos. Ainda segundo a Shari’a, a paz entre muçulmanos e não-muçulmanos é sempre problemática e os confrontos podem ser inevitáveis. Relativamente às mulheres, o problema da igualdade nem sequer se põe; a Shari’a impõe a segregação das mulheres e, em algumas interpretações mais estritas, exclui-as de toda a vida pública.

 

(Continua)

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