Será que Warren Buffett leu Lénine? – por António Gomes Marques

 

 

O Diário de Notícias deu início no mês em curso, nas suas páginas centrais, a uma nova rubrica intitulada «31 entrevistas em Agosto», na qual têm surgido várias personalidades. Em cada uma das entrevistas surgem «8 perguntas sobre a situação política», sendo a primeira: «As eleições clarificaram a situação?», pergunta esta a que não resisto responder neste texto. Aí vai:

 

«Penso que sim. Antes, tínhamos um Primeiro-Ministro liberal, que se dizia socialista, e que foi desmantelando o estado social afirmando que o queria proteger, tomando de vez em quando algumas medidas de esquerda que nunca pusessem em causa o capital financeiro, protegendo vergonhosamente os especuladores. Agora, temos um Primeiro-Ministro ultraliberal que não esconde ao que veio, vendendo ao desbarato as poucas jóias do Estado, numa protecção despudorada desse mesmo capital financeiro, naturalmente caminhando para o objectivo final que é o Estado ficar apenas responsável pela administração da Justiça e da Segurança, privatizando tudo o mais. Nesta medida, de facto, as eleições clarificaram.»

 

 

Estes ultraliberais e os detentores portugueses deste capital financeiro esquecem-se que «o Mundo pula e avança». Não sei é se os milionários portugueses têm capital disponível para comprar o que o Governo tem para vender a preços de saldo.

 

Havia quem pensasse que os EUA eram o país que iria reinar eternamente, como exemplo a imitar por todos os outros, ou seja, como o paraíso possível que só o sistema capitalista pode proporcionar neste Mundo em que vivemos. Agora, verifica-se que o seu reino está a acabar e outros «paraísos» se preparam para o substituir.

 

Fernando Sobral, no Jornal de Negócios de 19 de Agosto p. p., lembrava que «A China é o maior credor dos EUA e tem cerca de 40% das reservas monetárias globais. Dessas reservas 70% são dólares e 20% euros. Para a China a centralidade do dólar está a chegar ao fim. A reforma do sistema financeiro mundial vai assentar num cabaz de moedas, onde estará o yuan chinês. E isso chegará mais cedo do que se pensa.».

 

Nos jornais desta semana, ficámos a saber o que Vladimir Putin pensa e, mais importante, já se atreve a dizer sem qualquer problema: «Os EUA estão a viver acima das suas possibilidades (…) agindo, até certo ponto, como um parasita da economia global e da posição de monopólio do dólar.»

 

Sobre a questão do monopólio do dólar: o que aconteceria aos EUA se todos os países produtores de petróleo deixassem de transaccionar este produto em dólares? Será que a queda de Saddam Hussein não teve nada a ver com esta questão? E a guerra actual na Líbia também não? E o que pretendem fazer com Chávez também não estará ligado ao mesmo? Note-se que não estou a defender nenhum dos três, particularmente os dois primeiros, mas penso que as razões apresentadas para combater estes e outros não são as reais, como ficou claramente demonstrado no Iraque. Ainda sobre esta questão e, sobretudo, pensando no poderio americano, a estratégia seguida na Líbia já me parece demonstrativa da sua actual diminuição de poder, mas veremos, mesmo assim, se a França consegue já suplantar os EUA na distribuição dos despojos e, o mais importante, do petróleo. Ainda uma pergunta sobre a Líbia: a Rússia e a China estarão na disposição de perder as relações privilegiadas que tinham com este país?

 

Claro que o que se passa na Líbia tem muito a ver com o que se passa no mundo árabe, onde os movimentos de emancipação dos povos de vários destes países não me parece que possam ser travados. Será que a própria Arábia Saudita ficará imune, lembrando que o país é uma monarquia governada pelos filhos e pelos netos do rei Abd Al Aziz Al Saud? Será que os EUA ainda terão poder para defender o poder oligárquico da família que domina o país? E será que os EUA ainda terão poder para ajudar Israel a resistir?

 

É evidente que todas estas situações poderão durar mais ou menos anos, mas estou convencido de que ainda vou viver o tempo suficiente para ver o que há uns dez anos parecia impossível, ideia esta reforçada pelos desastres que as aventuras do Iraque e do Afeganistão estão a ser para os EUA. O futuro, queiram os EUA ou não, vai passar pela China, pela Rússia, pela Índia, pelo Brasil, pela Turquia.

 

Numa viagem que fiz pela Turquia em 2010, tive oportunidade de reforçar o que penso sobre o futuro deste país, cuja entrada na UE defendo, em total desacordo com o meu camarada João Cravinho, o qual, num jantar já depois de ter sido colocado em Londres (estava a incomodar muito o poder em Portugal) se mostrava contrário. Deixo apenas esta pergunta: como interpretar as recentes posições de Recep Tayyip Erdogan, 1.º Ministro turco, sobre a Somália? Disse ele que “O que ocorre hoje na Somália não é só uma prova para a população somali, mas para toda a humanidade”, afirmando ainda que “Para que neste teste ganhe a humanidade, todos devemos estender a mão ao país. Porque o que ocorre hoje na Somália, amanhã pode suceder em qualquer outro país”. Há uns anos atrás seria possível ouvir isto ao 1.º Ministro turco?

 

Recentemente, o multimilionário Warren Buffett escreveu um artigo no New York Time sob o título «Parem de acarinhar os super-ricos», onde mostra a desigualdade que impera no tratamento fiscal aos que vivem do seu trabalho em comparação com aqueles a que chama mega-ricos, nos quais se inclui. O multimilionário vai mesmo ao ponto de comparar as taxas a que foi sujeito com aquelas que o fisco aplicou aos seus colaboradores, afirmando que no último ano a taxa que incidiu sobre o seu rendimento tributável foi de 17,4%, o que constitui uma injustiça tendo em conta que as pessoas que com ele trabalham e que vivem apenas do rendimento que ali auferem pagaram taxas que vão dos 33% aos 41%.

 

Esta tomada de posição de Buffett constituiu uma valente bofetada nos milionários de todo o Mundo e parece estar a chamar à razão alguns de outros países, nomeadamente em França (curiosamente, buffet –só com um t- pode traduzir-se por bofetada).

 

Pensando em tudo isto lembramo-nos do que Lénine escreveu em «A Doença Infantil do Comunismo (o esquerdismo),» especialmente quando especificou que é apenas quando os de baixo não querem mais e que os de cima não podem continuar a viver à maneira antiga que a revolução pode triunfar (estou a citar de memória).

 

Será que Warren Buffett leu Lénine?

 

 No já citado artigo, Fernando Sobral escreveu também: «É neste mundo em mudança rápida que Portugal terá de agir. Libertando-se da dívida que o oprime. E apostando na mudança de paradigma económico e político nacional.» Será que, acrescento eu, que com estes políticos e com estes milionários portugueses Portugal vai mesmo apostar numa mudança de paradigma, não tendo eu a certeza de querer a mudança que quer o jornalista? Perante as reacções que esta gente teve ao artigo de Warren Buffett parece podermos concluir que, pelo menos, Lénine não leram, mas Fernando Sobral leu-o com toda a certeza, o que não é suficiente para anular esta minha última dúvida.

 

Entretanto, vou ouvindo Luis Pastor cantando Miguel Hernández:

 

… Herramienta es tu risa,

luz que proclama

 la victoria del trigo

sobre la grama.

Ríe. Contigo

venceré siempre al tiempo

 que es mi enemigo.

 

 

 

 

António Gomes Marques, nasceu em 1945 em Chã de Alvares, concelho de Góis, Coimbra. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, foi co-fundador e principal responsável durante anos dos Grupos de Teatro, da Biblioteca e de Cinema dos Serviços Sociais da Caixa Geral de Depósitos. Durante cinco anos, foi presidente da direcção da APTA – Associação Portuguesa do Teatro de Amadores, sendo responsável pela organização de Festivais Nacionais de Teatro de Amadores.

  

Nomeado pelo Secretário de Estado da Cultura, António Reis, para representar Portugal no Festival do Trabalho da ex-RDA, em 1978, foi também delegado português ao Congresso da AITA/IATA – Associação Internacional do Teatro de Amadores e Festival Mundial de Teatro de Amadores, realizados em Blagoevgrad-Bulgária, em 1979. Participou noutras reuniões internacionais sobre teatro, sendo delegado português ao Congresso da AITA/IATA – Associação Internacional do Teatro de Amadores e ao Festival Mundial de Teatro de Amadores, realizados no Principado do Mónaco em 1981.

 

Integrou a equipa técnica da Companhia de Teatro Amascultura, com sede no Centro Cultural da Malaposta, ficando responsável pela Documentação, ali permanecendo desde o início de actividade da Associação, em 1988, até 1995. Representou a Amascultura, na “Homenagem a Carlos de Oliveira – 50 anos de literatura”, organizada em conjunto com a Comissão Instaladora do Museu do Neo-Realismo de Vila Franca de Xira. É membro da Direcção da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo. É autor de Da Chefia à Liderança – Um Caminho para a Mudança

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