UM CAFÉ NA INTERNET – ADUNAR, por Fernando Correia da Silva (Lisboa, 1931)

 

 

Um café na internet 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

Adunar na vertical é transformar o instinto em razão e esta naquele.

É conseguirmos ver o Invisível.

É usarmos de infravermelhos para localizar o Monstro agora diluído em estruturas canibais, omnipotência, omnipresença.

É sabermos detectar a tempo as suas teias e evitar nelas pousar.

É rasgarmos as suas máscaras, sejam elas lotes de acções ou abertura de caça ao preto e ao cigano.

É darmos valor à vida humana, em vez do preço que ele pretende atribuir-lhe.

É sermos indiferentes à diferença entre irmãos, homens que todos somos.

É não deixarmos que ele converta as nossas vidas num andar solitário por entre a gente.

É não deixarmos que ele transforme os homens em colónias de formigas.

É conseguirmos pôr no Soweto um pianista japonês a emocionar a assistência com um nocturno de Chopin.

É não deixarmos que tantos morram à fome enquanto permanecem terras férteis em pousio e há trigo acumulado nos celeiros.

É não consentirmos que as máquinas tomadas pelo Monstro nos deixem com a alma em desarrimo.

É não deixarmos que ele transforme o planeta em esgoto a céu aberto.

É não aceitarmos as gorjetas que ele oferece para olharmos para o outro lado.

É não deixarmos que nos atire para a lixeira.

É não consentirmos que o Direito Comercial lace, aperte, esmague e devore os Direitos do Homem.

É arrimar-nos a um tronco largo quando a jibóia ataca, comprimento ela não tem para laçar-nos juntamente com a árvore.

É puxarmos da catana e retalhá-la se ela insistir no ataque.

É dinamitarmos a digestão antropofágica do Labirinto.

É espantarmos os disciplinados cumpridores de ordens, os bandos de corvos sempre à espera da sua quota-parte de carniça.

É ensinarmos as gaivotas a cagar na cabeça de arrogantes e presunçosos.

É darmos um banho de lixívia aos engravatados distribuidores de paninhos e água quente.

É cravarmos malaguetas no umbigo do Dr. Prepotência, e outras, como flechas, no cu que o Dr. Banqueiro tem como cofre.

É nunca ficarmos de costas para os traidores que há na vida.

É estarmos sempre atentos às manobras do Piloto que elegemos.

É sabermos transformar as espadas em arados e as metralhadoras em berbequins.

É levarmos os mansos a possuir a terra.

É consolarmos os que choram.

É saciarmos os que têm fome e sede de justiça.

É acreditarmos que, embora Invisível, será ainda possível empurrar o génio do Santo Lucro para dentro da garrafa, como outrora acreditámos que era possível vencer o Hitler, mesmo quando todos, até os nossos filhos, garantiam que ele já era o rei do mundo.

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