O Saudoso Tempo do Fascismo – por Hélder Costa – 1

Iniciamos hoje a série O Saudoso Tempo do Fascismo, de Hélder Costa. Dos textos que antecedem a  prosa do autor, apresentamoseste que sintetiza de forma exemplar á essência da escrita do encenador, actor, director teatral, Hélder Costa. O autor é bem nosso conhecido – Urbano Tavares Rodrigues. 

 

 

Introdução ao riso e à memória – por Urbano Tavares Rodrigues

 

A certeira máxima latina Ridendo castigat mores nunca teve ainda no nosso teatro tão talentosa e acutilante persistência a ilustrá-la como na obra de Hélder Costa, dramaturgo e encenador, na boa linha de Molière, que mais uma vez aparece a desancar os grandes deste mundo, e em especial do nosso desgraçado país, nas páginas escaldantes de humor de O Saudoso Tempo do Fascismo.

 

Não se trata desta vez de um novo texto dramático ou de uma novela burlesca como outras que Hélder Costa já escreveu, mas de um livro de memórias, com certo toque pícaro e romanesco bem ao seu jeito. Poderia ser quase uma auto¬biografia meio humorística, mas Hélder Costa preferiu falar da sua geração, daqueles que hoje têm às vezes a nostalgia da juventude e das lutas que então travaram contra as ditaduras de Salazar e Caetano e o seu cortejo de ricaços pre-potentes, de fascistas e oportunistas, fidalgos decadentes e industriais de curta visão.

 

É claro que ele está também presente nestas páginas saborosas, evocando a infância em Grândola, o duro tempo da 1ª Grande Guerra, as marcas da opressão, mas também os bailes da época e as jovens sentadas à volta da sala, aguardando que as convidassem a dançar, e ainda o olhar severo das mães, das rias, das avós que as guardavam. E depois a Coimbra dos estudantes e das greves, os primeiros combates pela liberdade, as primeiras leituras secretas de Marx e de outros autores proibidos, a tropa no batalhão disciplinar de Penamacor. E depois a Lisboa dos anos sessenta, as greves na Universidade, antecipando o Maio francês de 68, os primeiros passos de emancipação das raparigas, o erotismo em frente comum com a luta política. Tudo isto Hélder Costa conta como quem fala, com o traço grosso das suas caricaturas, a piada imediata, o riso alto e brejeiro. Com rios de graça. Ora contundente, ora faceiro e até, vamos lá, com o gosto de recordar, sem ceder ao lirismo, sem se tomar muito a sério.

 

Cem por cento Hélder Costa.

 

Edificante é a hisrória mais ou menos verídica do senhor Joaquim, pequeno industrial-operário corticeiro, vítima do fascismo de «bom gosto e bom tom”. E muitas outras histórias deste calibre vamos desfolhando ao ler O Saudoso Tempo do Fascismo.

 

Aqui encontramos também evocações emocionantes como a de José Afonso rejeitando benesses e cantando a sua “Catarina”, sem um chavo, em Grândola, onde HeIder Costa nos conta ter-se iniciado como encenador, ele que viria a criar, no exílio, um teatro operário em Paris, valorizando o trabalho colectivo de grupo. Nessa mesma cidade cheia de emigrantes portugueses e de jovens que haviam dito não à guerra colonial, Helder inseriu-se espontaneamente na grande onda contestatária do Maio de 68. «Mais do que um acto puramente polírico ou partidário – diz-nos ele – tratou-se da rejeição de um modelo de vida e de sociedade.»

 

Neste livro convivem a todo o momento a crítica e a mofa, armas de ataque do autor, com a lembrança simples, por vezes à beira da emoção, de gestos herói¬cos levados a rir, em que a ideologia, a dignidade e a adrenalina do risco se dão as mãos. Tudo isto numa galopada de juventude estuante, como no capítulo dedicado a Campo de Ourique ou em múltiplas referências à fraternidade desafiante, ao amor c à ternura que enchiam as algibeiras rotas deste revolu-cionário andante, vozeador que, espalhando brasas, também colecciona a amizade.

 

Eis um livro quase inclassificável que todos os da margem esquerda da vida, e não só, vão gostar de ler.

 

 

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Hélder Costa nasceu em Grândola. Estudou Direito nas universidades de Coimbra e de Lisboa. Em Coimbra fez parte do CITAC. Em Paris,onde estudou Teatro, fundou o “Teatro Operário de Paris”. Regressou a Portugal em 1974 Actor, dramaturgo e encenador, dirigiu cursos de Arte Dramática. É o director do Grupo de Teatro ” A Barraca”.

 
Principais obras: : Liberdade, Liberdade, Lisboa, 1974; O Congresso dos Pides e Um Inquérito, in “Ao Qu’isto chegou”, 1977; A Camisa Vermelha, Coimbra, 1977; Três Histórias do Dia-a-Dia (O Jogo da Bola, A Sorte Grande, A Vaca Prometida), 1977; Histórias de fidalgotes e alcoviteiras, pastores e judeus, mareantes e outros tratantes, sem esquecer suas mulheres e amantes: sobre textos de Gil Vicente e Angelo Beolco, o Ruzante, Lisboa, 1977; Zé do Telhado, Coimbra, 1978; D. João VI, Coimbra, 1979; Teatro Operário: 18 de Janeiro de 1934, Coimbra, 1980; É Menino ou Menina (dramaturgia composta a partir de textos de Gil Vicente), Lisboa, 1981; Um Homem é um Homem – Damião de Góis, teatro, Coimbra, 1981; O Príncipe de Spandau, Lisboa, 1997; Marilyn, meu amor, drama original em dois actos, Lisboa, 1997; O Mistério da Camioneta Fantasma, Lisboa, 2001.O Incorruptivel, Fernão, mentes?, Bushlandia, Obviamente demito-o!, O Professor de Darwin, A Balada da Margem Sul, As peugas de Einstein (estreada no Brasil, inédita em Portugal)

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