UM CAFÉ NA INTERNET – Perversão I – por Manuela Degerine

Um café na Internet

 

 

 

 Naquele liceu trabalhavam mais de cem professores e, por se encontrarem numa periferia com bairros sociais, onde a violência se banalizara, muitos espreitavam a ocasião de uma mudança. Professora de uma “língua rara” na escola francesa, eu ficava por razões várias, sendo a mais decisiva não haver vagas noutros liceus porém, caso houvesse, manter-me-ia ali enquanto o “Rectorat” o permitisse, pois apreciava aquele espaço de trabalho, seus alunos, professores e administração. A dificuldade do labor quotidiano e a complicação dos concursos haviam juntado gente lógica e inventiva e dinâmica que, para além de se aplicar no trabalho, também lia, viajava, escrevia, encenava, investigava… Naquele espaço de múltiplos possíveis, uma professora de Árabe ou Português não parecia um canguru na lezíria; era uma colega. O labirinto dos horários, hábitos, harmonias reunia e separava por conseguinte, com alguns colegas, eu não só conversava todos os dias mas também ia ao cinema, via exposições, fazia caminhadas ou passeios de bicicleta, enquanto outros, igualmente interessantes, só apareciam uma vez por semana para “pôr a escrita em dia”, lusismo que eu divulgara e me era devolvido com variações, das quais me recordo, por exemplo, de “mettre l’écriture à la page”, ou seja, “pôr a escrita em parangonas”… Havia muitos colegas pelos quais, sem reparar, todos os dias passava, numerosos eram também os que só revia em reuniões, beberetes, vigilâncias e, nestas ocasiões, surgiam até integrais desconhecidos, recém-chegados ao liceu, com horários complementares do meu.

 

Na última categoria encontrava-se um professor de Francês com o qual trocara duas frases, dois anos antes, na sala onde eu vigiava uma prova e ele distribuía papel de rascunho. Não lhe conhecia o nome. Por uma questão de notas, perguntara um dia como se chamava, os alunos informaram em coro e, durante muitos meses, cada vez que me referi ao colega, chamei-lhe sempre Guioux.

 

Naquele primeiro sábado de aulas, ao meio-dia, antes de me lançar na direcção da bicicleta e do fim-de-semana, fui arrumar material no cacifo e encontrei uma carta indicando no remetente Monsieur Le Guioux, Madame Leclerc no destinatário.

 

Continha um rectângulo fotocopiado, com um recorte minucioso, de modo a começar uma sequência narrativa no princípio exacto mostrando igualmente o título da obra: “Les Onze Mille Verges”. Obra provocadora de Guillaume Apollinaire, homofónica das célebres “Onze Mil Virgens” (e mártires) que acompanharam Santa Úrsula e cuja desgraça inspirou tantos pintores. No título de Apollinaire, “vierges” é substituído por “verges”, que podemos traduzir por “varas” e designa em francês, aqui no plural, o sexo masculino. O texto da fotocópia narrava uma felação e terminava no canto inferior direito com outro recorte que correspondia ao fim da sequência. Com toda a evidência, o remetente desejara indicar o título da obra e desejara que a sequência aparecesse completa, sem ser parasitada pela última palavra da precedente nem pela primeira da que se seguia. Espírito rigoroso. Que mais desejava?

 

Numa sala de professores, misturada com papéis avisando que dois alunos saíam numa visita de estudo, quatro mudavam de grupo e quinze faziam provas de Espanhol – aquela missiva deixou-me perplexa. À minha volta circulavam colegas na azáfama feliz que precede o fim-de-semana. Eu imobilizara-me com o papel na mão. Que queria aquele “Monsieur Le Guioux”? Perguntei se trabalhava ao sábado, acabaram por me informar que não.

 

 (Continua)

 

 

 

 

Ilustração: The Fireside Angel, Max Ernst, 1937

 

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