UM CAFÉ NA INTERNET – Perversão V – por Manuela Degerine

Um café na Internet

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(Continuação)

 

Assentámos em que a mensagem recebida, por exprimir uma fantasia mais masculina do que feminina, provinha decerto de um homem, que sentiria a tentação de acentuar o delírio, porquanto não havíamos modificado o comportamento após a primeira intentona; caso contrário, não havendo entre os meus quem coincidisse com o perfil, tratava-se de aposta, brincadeira ou acção experimental dos amigos dele. Embora não ignorássemos quanto estas hipóteses tinham de frágil e contestável, precisávamos – em todo o caso: eu precisava – de adoptar uma estratégia; e esta não nos pareceu pior do que outra.

 

O ano escolar terminou sem decifrarmos o enigma. Não voltámos a receber mensagens transgressoras, nenhum aluno mostrou atitudes suspeitas, nada revelou que qualquer colega nos observasse. Passaram-se vários anos. Em 2006 o “Rectorat” mudou-me para outro liceu. E os colegas com quem me relacionava também foram saindo de Bécon. Conformara-me com esta dedução: é assim na vida real. Há falhas, incongruências, inconsequências, mistérios nunca esclarecidos, ímpetos que caem no nada. Vivemos num mundo com poucas certezas. Ainda bem, concluía eu.

 

Na peripécia eu confirmara, de maneira desnecessária, pois tinha dele consciência permanente, o contraste da realidade com as leis e discursos: os homens continuam a beneficiar de maior liberdade do que as mulheres. Eu sentira-me mais incomodada do que o meu colega.

 

Uma noite encontrei, à saída do teatro, um colega de Bécon, fumador, sindicalista e comparsa de Amiel Le Guioux. Deu-me notícias. Os agora reformados. As agora mães de família. Os nomeados directores de escolas, as transferidas para o ensino superior, os que davam a volta ao mundo num veleiro.

 

 – E o Amiel, soubeste?… – Aconteceu-lhe alguma coisa? – Foi preso. – Foi?! – Sabes como é a nossa época, o puritanismo anglo-americano, o politicamente infecto ou correcto… Umas cartas obscenas, enfim, trapalhada inacreditável, ninguém soube ao certo… Eu quis mobilizar os colegas mas ele recusou. A luta está cada vez mais difícil… É o salve-se quem puder… Os colegas mais novos não sabem unir-se!

 

Despedimo-nos antes de ele clamar que antigamente era melhor. (Eu, de certo modo, apaziguada: suspeitara sempre de Amiel Le Guioux.)

 

(Continua)

 

 

 

 

Ilustração: The Fireside Angel, Max Ernst, 1937

 

 

 

 

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