Livre para morrer, por Paul Krugman. Selecção, apresentação e tradução por Júlio Marques Mota.

Nota de leitura


Mais um texto vos apresentamos  sobre os candidatos a candidato presidencial pelos  Republicanos  nos Estados Unidos  e que nos mostra bem os perigos que se correm se Obama ou um outro candidato Democrata não ganhar as eleições nos Estados Unidos. Com o mundo a braços com uma profunda crise por responsabilidade directa  dos políticos que autorizaram dados mecanismos  e dados enquadramentos que   nos levaram directamente à crise, e que, em vez de assumirem  os seus erros, como  é normal em democracia,  nos estão a impor enquadramentos sociais, económicos e políticos que claramente nos aproximam  do fascismo, equivalente funcional do fascismo, dizem-nos os italianos, e dizem assim porque acham que agora ainda  falta a dureza, a violência,  dos mecanismos repressivos de outrora mas que neste momento são substituídos por outros mecanismos, como a precariedade, o medo, mais violentos ainda e politicamente mais baratos.


Da América vem, pela pena de  Krugman um exemplo disso mesmo,  em que se descreve que a direita americana pura e dura substitui o direito de escolher que caracteriza a direita americana dos anos Reagan, pelo direito de morrer, que caracteriza a direita de agora. Cada um deve assumir os seus riscos, os riscos da sua liberdade, é a tese aplicável a todos e qualquer que seja a sua posição, o seu rendimento,  e o exemplo pode ser transposto para o Portugal de hoje, onde todos têm, crianças, adultos, velhos, ricos ou pobres, nas palavras sibilinas de Passos Coelho,  que ser alvo dos mesmos cortes para esmagar a crise. A todos o mesmo direito, a todos o mesmo imperativo e a direita de lá como a de cá, continuará a falar que isto é que é a liberdade, que isto é igualmente o respeito pelos mercados.

 

Coimbra, 22 de Setembro de 2011

 

Júlio Marques Mota 

 

Livre para morrer

 

By PAUL KRUGMAN

 

Setembro 15, 2011

 

Regresso a 1980, à altura em que  a América fazia a sua viragem política para a direita, Milton Friedman emprestou a sua voz a esta mudança com a famosa série emitida pela televisão “Livres para escolher.” Em episódio após episódio, o economista genial identificava o laissez-faire na economia com as escolhas pessoais e com a responsabilização, uma visão optimista que é depois retomada e ampliada por Ronald Reagan.


Mas isso era naquela época. Hoje, “a liberdade de escolher” tornou-se em “a liberdade de morrer.”


Faço alusão, como podem calcular, ao que se passou durante o debate entre os candidatos Republicanos às Presidenciais. Wolf Blitzer, da cadeia CNN,  perguntou ao candidato Ron Paul[1] o que é deveríamos fazer se um homem de 30 anos, que escolheu não adquirir um seguro de saúde, se encontrar, de repente, numa situação em que tem necessidade de seis meses de cuidados intensivos? O candidato Ron Paul respondeu: “ A liberdade deve ser aplicável a tudo – assuma os seus próprios riscos “. Blitzer voltou a questionar o candidato Ron Paul perguntando-lhe se “a sociedade deveria pura e simplesmente deixá-lo morrer”.


E a assembleia presente desatou aos gritos, eram só exclamações, gritos de apoio, “Yeah!”

O incidente pôs em relevo algo em que eu próprio não acreditava, ou seja, que a maior parte dos comentadores políticos tivessem completamente assimilado: neste momento, a política americana está fundamentalmente assente nas diferentes visões de ordem moral.

Agora, há duas coisas que todos devemos saber sobre a troca de palavras entre Blitzer e Ron Paul. A primeira é que, depois do barulho da multidão ter passado, Paul tentou basicamente evitar a pergunta, afirmando que há sempre médicos calorosos e pessoas caritativas que continuariam a assegurar que as pessoas recebam os cuidados de que necessitam – ou pelo menos estas pessoas fá-lo-iam se não tivessem sido corrompidas  pelo Estado Providência. Lamentamos, mas isto é uma fantasia. As pessoas que não têm meios para pagar os cuidados médicos essenciais de que precisam frequentemente não os conseguem obter e continuam a sentir-lhes a falta – e às vezes, elas morrem em resultado disso mesmo.


A segunda é que muito poucos daqueles que morrem por falta de cuidados médicos, serão parecidos com o  indivíduo hipotético de que falava Blitzer que poderia e deveria ter comprado o seguro de saúde. Na realidade, a maioria dos americanos não cobertos com o seguro de saúde  ou têm baixos rendimentos  e não podem pagar um seguro, ou são rejeitados pelas seguradoras, porque têm problemas crónicos de saúde.


Estarão as pessoas de direita dispostas a deixar morrer por falta de cuidados aqueles que não têm seguro sem ser por culpa própria ? A resposta, com base na história recente, é um retumbante “Yeah!”


Pensem, em particular, nas crianças.


No dia seguinte ao debate, o Census Bureau, [o equivalente ao nosso INE e com funcionários de alto gabarito técnico] publicou as suas mais recentes estimativas sobre a pobreza, sobre os rendimentos e sobre os seguros de saúde. O quadro geral exposto é terrível:  a economia continua fraca e a causar fortes estragos na vida dos americanos. Mas nesse relatório, contudo, havia um item a poder ser considerado relativamente brilhante, o dos cuidados de saúde para com as crianças: a percentagem de crianças sem cobertura de saúde em 2010 é menor do que antes da recessão, em grande parte graças ao desenvolvimento de um programa de apoio, o State Children’s Health Insurance Program, or S-chip.


E a razão que levou a que o S-chip se expandisse em 2009, e não antes, foi, evidentemente, porque o ex-presidente George W. Bush bloqueou as tentativas anteriores de aumentar a cobertura de saúde às crianças – para satisfazer muitos dos que estão politicamente à direita. Terei já mencionado que uma em cada 6 crianças no Texas não tem cobertura de cuidados de saúde, a segunda maior taxa do país?


Assim, a liberdade de morrer  atinge, na prática, tanto as crianças como os infelizes ou os imprevidentes. E a direita ao aceitar ou ao fazer sua esta ideia, está a dar sinais de uma importante mudança na natureza da política americana.


No passado, os conservadores aceitaram a necessidade de o governo garantir mecanismos de segurança social por razões humanitárias. Não pensem que sou eu a dizê‑lo, a defendê-lo, oiçam Friedrich Hayek, o herói intelectual conservador, que especificamente declarou em “The Road to Serfdom” o seu apoio a  “um sistema abrangente de segurança social” para proteger os cidadãos contra “os perigos comuns da vida”, e de entre estes salientou particularmente a saúde.

Dado haver acordo quanto à pretensão de criar mecanismos de apoio e de protecção dos cidadãos contra o pior, o problema passou depois a ser colocado em termos de custos e de benefícios – e os cuidados de saúde foi uma das áreas em que até mesmo os conservadores trabalharam e mostraram estar  dispostos a aceitar a intervenção governamental em nome da compaixão, tendo em conta a evidência clara de que a cobertura do não segurado  não custaria, de facto, muito mais dinheiro. Como muitos observadores sublinharam, o plano de Obama para a saúde foi em grande parte criado com base em anteriores planos de saúde dos Republicanos, e é praticamente idêntico à reforma de saúde de Mitt Romney[2] em Massachusetts.


Agora, no entanto, a compaixão está fora de moda – com efeito, a falta de compaixão tornou-se uma questão de princípio, pelo menos entre a base dos Republicanos.


E o que isso significa é que o conservadorismo moderno é, na verdade, um movimento profundamente radical, e que é hostil ao tipo de sociedade que tivemos durante as três últimas gerações – isto é, tivemos uma sociedade em que, ao agirmos através do governo, tentamos mitigar alguns “dos perigos comuns da vida” através de programas como a Segurança Social, Protecção contra o desemprego, Medicare e Medicaid.


Estarão os eleitores dispostos a adoptar uma rejeição tão radical da América, como aquela em que quase todos nós fomos criados? Penso que é o que iremos ver no próximo ano.


[1] Congressista eleito pelo Texas

[2] Ex-governador de  Massachusetts, um dos candidatos  nas primárias dos Republicanos. 

Leave a Reply