A economia social e o modelo económico europeu: o caso do mercado de trabalho – 1. Por Margarida Antunes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social

28 de Maio de 2011

 

A economia social e o modelo económico europeu: o caso do mercado de trabalho

Margarida Antunes

FEUC/CECES

mantunes@fe.uc.pt

 

 

1. Introdução

                

Desigualdades na repartição do rendimento, desigualdades salariais, insegurança no emprego, redução do peso dos salários no rendimento total, taxas de desemprego elevadas no espaço europeu, desvalorização e reconfiguração do Estado, menorização do Estado Social, estes são factos que acompanham o modelo económico presente que vigora desde o início dos anos 80 — o modelo da economia global. É também no início desta década que se desenha um interesse renovado nas instituições da economia social que se mantém até hoje. É assim pertinente levantar algumas questões: Como identificar a relação entre a economia social e o modelo económico presente? Como é que este último identifica e assume o papel da economia social? De que forma esta última tem “colaborado” no funcionamento do modelo económico europeu?


Para muitos, as duas primeiras questões têm resposta imediata e vão no sentido de realçar o papel complementar preponderante da economia social nomeadamente na criação de emprego, na promoção de actividades não-mercantis, porque não asseguram um nível de lucro suficiente para a actividade privada empresarial, na inclusão de grupos mais desfavorecidos da sociedade. Esta é a resposta de inúmeros autores da área da economia social (CIRIEC, 2005) como também de instituições europeias como o Parlamento Europeu (2009). Ainda nesta linha se enquadram autores como Silva (2008), embora com uma visão mais crítica, para quem a economia social pode desempenhar um papel essencial na resolução dos problemas sociais gerados pelo modelo económico presente. Para muitos destes autores, a terceira pergunta pode nem sequer fazer sentido, pois não perspectivam a ideia da economia social contribuir para os disfuncionamentos sociais associados ao modelo económico europeu.


Há autores que provavelmente não encontram qualquer sentido em nenhuma das questões, pois concebem a economia social como uma alternativa ao actual sistema económico. Para Namorado (2004, p. 13), “não podemos deixar reduzi-la a uma simples instância de contenção e compensação dos estragos que a sociedade capitalista provoca no tecido social”. A economia social deve antes ser encarada como uma “constelação de esperanças”.


O objectivo desta conferência é precisamente contribuir para este debate, essencialmente no que respeitas às questões associadas ao mercado de trabalho. Para o efeito, discute-se de seguida um dos efeitos económicos mais visíveis neste mercado que decorre do funcionamento do modelo económico presente — a desvalorização relativa dos rendimentos salariais —, passando-se depois à análise da instabilidade crescente nos mercados de trabalho europeus. Com contributo para esta discussão, surge também a redefinição do papel do Estado na economia que se operou nos últimos trinta anos, à qual se dará destaque posteriormente. Por fim, e a partir do anterior, desenham-se algumas linhas de reflexão a seguir.


Toda a análise que se pretende com este texto vai incidir basicamente na União Europeia a 15 (UE 15), pelo facto de os novos Estados-membros não terem passado por todo o processo em análise. Temporalmente termina em 2007, pois pretende analisar-se tudo isto independentemente da crise presente cujas características se começam a definir de forma mais visível em 2008.

  

2. A desvalorização relativa dos salários

 

Com o funcionamento do modelo da economia global, a repartição funcional do rendimento alterou-se de forma significativa. O peso dos rendimentos do trabalho no PIB diminuiu notoriamente, sendo então a redistribuição do rendimento feita claramente a favor dos rendimentos do capital. Isto constitui um pano de fundo a todas as economias, independentemente do seu nível de desenvolvimento económico. A desvalorização relativa dos rendimentos salariais deu-se mesmo tendo em conta os aumentos significativos dos salários dos trabalhadores mais qualificados e ou dos que ocupam posições cimeiras nas hierarquias das empresas, evolução esta que tem caracterizado também este próprio modelo, mas que se começa a alterar pela desvalorização relativa dos salários de muitos trabalhadores qualificados.


As bases explicativas para esta situação, essencialmente nas economias ocidentais, podem ser organizadas em duas categorias de factores. Uma aponta para que as razões residam essencialmente na evolução “natural”, normal, do processo económico ou da globalização económica. A outra categoria de explicações inclui factores que não se deduzem directamente das condições de produção nem da globalização económica, mas que dependem antes da decisão e escolha política ou são induzidos da política económica e que estão de forma indirecta ligadas às primeiras.


Quanto ao primeiro grupo, nele incluem-se dois factores principais. Um é o desenvolvimento tecnológico, justificação central dada por autores de origem neoclássica. De acordo com esta perspectiva, o progresso técnico tem levado à utilização sucessiva de técnicas relativamente mais intensivas em capital, levando assim ao aumento (redução) do peso dos lucros (salários) no rendimento total. Há aqui assim um efeito de estrutura a justificar a evolução relativa dos rendimentos do trabalho. Em estudos empíricos representativos desta visão como o do FMI (2007) e o da Comissão Europeia (2007), o desenvolvimento tecnológico aparece precisamente com a contribuição mais significativa na diminuição do peso dos salários no rendimento total entre 1982 e 2002 em dezoito países da OCDE, no primeiro caso, e entre 1983 e 2002 em treze países desenvolvidos incluindo, entre outros, as cinco principais economias da União Europeia, os Estados Unidos e o Japão, no segundo estudo. Stockhammer (2009) relativiza estes resultados, não só devido a aspectos metodológicos que envolvem ambos os estudos, como também pelo facto de no seu próprio estudo empírico identificar antes a financeirização da economia[1] como o principal contributo para a redução do peso dos salários no rendimento total.


O outro factor explicativo incluindo ainda na mesma categoria é o movimento de globalização económica que é avançado por quem considera este movimento apolítico, apenas resultando da evolução normal da mobilidade internacional dos factores produtivos. Sendo então este movimento feito no quadro da concorrência à escala mundial, tem beneficiado essencialmente os factores produtivos mais móveis internacionalmente, ou seja, o capital e os trabalhadores mais qualificados. Relativamente aos trabalhadores menos qualificados, a mobilidade do capital na procura da minimização dos custos ou da maximização do seu rendimento à escala global tem permitido uma lógica de competitividade salarial que tem levado ao condicionamento dos salários respectivos. É neste sentido que apontam os estudos empíricos do FMI e da Comissão Europeia já referidos, que sugerem que este é também um contributo fundamental, embora menor que o do desenvolvimento tecnológico, para a redução do peso dos salários no rendimento total, ou o trabalho de Stockhammer (2009), no qual este factor surge como um dos principais a seguir à financeirização da economia.


Quanto às explicações de origem política, estas abrangem essencialmente três elementos. Um foi determinante no delineamento do modelo económico presente: as transformações ocorridas no início dos anos 80 na configuração da variável salário. Este passou a ser concebido essencialmente como um custo de produção e não como uma componente do rendimento capaz de assegurar fluxos elevados e estáveis de procura agregada. Esta foi claramente a visão assumida pelos governos e instituições internacionais e europeias na definição da política salarial que passou a estar orientada de acordo com a lógica da oferta e da criação de emprego, independentemente das condições de trabalho e salariais deste, com a política de competitividade internacional, com a política de controlo orçamental e essencialmente com a política de estabilidade de preços, estas últimas mais visíveis e sentidas na União Europeia.


Um outro elemento, não dissociado do anterior, tem a ver com a reformulação da concepção do desemprego que se verificou na mesma altura. O desemprego passou a ser visto essencialmente numa perspectiva microeconómica e esta alteração fundamental decorre da afirmação do “conceito” de taxa “natural” de desemprego no âmbito quer da política económica de governos nacionais quer de instituições internacionais (FMI e OCDE) e europeias (Comissão Europeia e Banco Central Europeu). De acordo com aquela, a política macroeconómica é ineficaz para reduzir a taxa de desemprego abaixo de determinado nível (a sua taxa “natural”), cabendo então este papel a políticas que incidam directamente no mercado de trabalho e em particular que incidam no funcionamento das variáveis institucionais a este mercado associadas (protecção no emprego, subsídio de desemprego, sindicatos, salário mínimo, contribuições para a segurança social). Com esta alteração na concepção do desemprego, estas variáveis passaram assim a ser consideradas determinantes na explicação do desemprego e têm sido sujeitas elas também a sucessivas alterações que têm menorizado a função para que foram inicialmente concebidas. Este movimento de enfraquecimento das variáveis institucionais é mais sentido na União Europeia que nos Estados Unidos, uma vez que na primeira estas variáveis estavam (e ainda estão) enquadradas num modelo social considerado protector de quem está empregado e generoso para quem está no desemprego. É neste contexto que se inserem a evolução da legislação laboral que se tem verificado, as alterações produzidas nos regimes de algumas destas variáveis institucionais e as condicionantes impostas a outras. Por exemplo, no que respeita à protecção no emprego, os chamados custos de recrutamento e de despedimento, considera-se que geram custos adicionais que impedem a renovação e a adaptação da mão-de-obra e que encarecem a contratação de novos trabalhadores. Tem-se assim legislado no sentido da redução destes custos ou promovido a utilização de contratos de trabalho mais flexíveis. Isto impôs limites nos rendimentos do trabalho, porque: a) este tipo de contratos estão associados a salários mais baixos que os dos outros tipos de contratos, como se verá mais à frente; b) muitas das vezes não têm acesso a determinados benefícios que decorrem do tempo de trabalho (subsídio de férias, subsídios de natal, etc.); c) dada a situação de precariedade, a capacidade de reivindicação salarial é bastante menor; d) podem impedir a constituição de uma carreira profissional que possibilita a subida de níveis salariais; e e) porque não são permanentes e são instáveis podem impossibilitar a formação profissional específica, o que restringe o aumento da produtividade do trabalho, factor este que pode limitar valorizações salariais futuras.


Quanto ao subsídio de desemprego, considera-se que prolonga e desincentiva a procura de trabalho e cria um patamar mínimo (o próprio subsídio) abaixo do qual um desempregado não aceita um novo emprego. Mais recentemente, e essencialmente na União Europeia, o subsídio de desemprego passou também a ser interpretado como uma componente da despesa pública que é necessário reduzir. Com isto, a evolução legislativa deste regime tem vindo a desvirtuar a lógica inerente à sua concepção original. Cada vez mais este subsídio vai deixando de constituir um rendimento de substituição para quem perde um emprego, para ser cada vez mais um pagamento, um apoio, para a procura activa de emprego. Neste sentido, tem-se diminuído o montante dos subsídios, reduzido o período máximo de atribuição e alterado as condições de obrigatoriedade de aceitação de emprego, o que tem levado à ocupação de postos de trabalho com níveis salariais cada vez menores, sob pena de se perder o direito ao próprio subsídio. Também, e de acordo com a lógica desta política, quanto menores forem o tempo de procura de emprego, o próprio subsídio e o número de beneficiários, menores serão as despesas públicas correspondentes e mais eficiente é considerado o serviço público associado. Ora, com esta reconfiguração do subsídio de desemprego, tem-se também desvalorizado em termos remuneratórios o trabalho, com influência na redistribuição do rendimento em detrimento daquele. 

 

(Continua)


[1] Neste texto adopta-se a definição de financeirização da economia dada por Epstein. Assim, de acordo com este autor, “a financeirização refere-se ao papel crescente dos mercados financeiros, das motivações financeiras, das instituições financeiras e dos agentes financeiros no funcionamento da economia e das respectivas instituições governativas, quer ao nível nacional quer internacional”. Definição citada por Palley (2008, p. 29).

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