Rascunho de um longo bilhete-postal que já não serei capaz de escrever – III. Por Júlio Marques Mota.

(Continuação)

 

Todo este sistema da economia globalizada e da utilização da enorme prerrogativa da ilegalidade legítima que os grandes mercados acabam por ter,  a lógica de Maillard acima descrita,  pode ser transposta para um triângulo de incompatibilidades,  o triângulo de Dani Rodrik.


A fim de percebermos os efeitos da globalização,  as escolhas nacionais que a partir dela têm sido feitas, podemos recorrer ao triângulo das incompatibilidades de Mundell,  agora transformado em triângulo dos trilemas de Rodrik. Com este triângulo podemos configurar os vários sistemas possíveis no plano económico, no plano político,  no plano da democracia, que se podem desenhar com ou contra a globalização actual.  Na construção do triângulo utilizam-se apenas três características fundamentais,  Estado Nação,  Democracia aprofundada,  Híperglobalização ou Democracia Mundial,  e estas três características só são combináveis duas a duas e sempre com a exclusão da terceira,  por incompatível com as outras duas,  quaisquer que estas duas sejam.  Daí o chamar triângulo das incompatibilidades.  E partir deste triângulo e dos seus trilemas que ele representa que iremos procuremos interpretar o texto de Maillard acima citado.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Neste triângulo,  cada vértice corresponde a uma situação económica e política.  As linhas (lados) representam cada uma delas diferentes estádios do “regime” económicos e políticos,  caracterizados cada um deles pelas situações identificadas nos seus pontos extremos.  Assim,  o sistema de Bretton Woods ou de globalização controlada é caracterizado pela autonomia das políticas nacionais com o respeito pelos cidadãos,  pelo respeito das suas aspirações e,  é considerado que os eleitos respeitam  ou carregam com as aspirações dos eleitores.  Neste caso este lado do triângulo é oposto à Economia Global ou híperglobalização porque as normas nacionais terão assim pouco ou nada a ver com a  dominação pelos mercados mundiais.  Foi o sistema que se sucedeu à segunda Grande Guerra e que veio a dar os trinta gloriosos anos de crescimento económico de que muita gente ainda se lembra.  Mas hoje este foi o sistema que os neoliberais levaram trinta anos a desconstruir.  A situação actual pura é dada pelo lado  direito do triângulo,  em que os seus extremos são a economia global e o Estado Nação a esta subordinado. Encontramo-nos no caso presente,  na situação caracterizada acima por Maillard.  As regras no seu limite,  a situação a que chamamos de situação pura,  são determinadas pelas multinacionais,  pelos centros financeiros sediados na sua maioria nos paraísos fiscais,  e a função do Estado é garantir os meios de que esses objectivos sejam satisfeitos.  Afastados da democracia, garantida agora a que a ilegalidade é legitimada,  pois é ao sabor destes interesses que as leis são feitas e são desfeitas,  afastamo-nos da democracia,  aproximamo-nos do fascismo,  seu contraponto aqui.  As regras da democracia esfumam-se ou perdem muito peso nas políticas nacionais uma vez que estas fundamentalmente são elaboradas para satisfazer os desígnios dos mercados globais. A ascensão de Passos Coelho ao poder e o programa que agora está a estabelecer e a querer ir ainda mais rápido que a Troika a vender em saldo o património nacional aos grandes senhores do capital são disso uma prova e a ameaça com as forças militarizadas às perturbações sociais que a sua política possa gerar,  são um elemento a reforçar o discurso de Maillard. Repare-se que esta segunda linha, o lado direito do triângulo, é oposto à Democracia, porque na situação que este lado, o da direita,  caracteriza é a democracia que é a excluída.


Vejamos agora o lado esquerdo do triângulo.  Este representa no canto inferior esquerdo,  o aprofundamento da Democracia, o respeito pelos cidadãos,pelas suas aspirações e em cima, representa-se a hiperglobalização. Este lado representa a situação  definida por Globalização e aprofundamento da Democracia,  projecto que se supõe uma economia mundo,  que supõe as organizações de Bretton Woods a responder a outros projectos que não os de agora e com outros estatutos que os que neoliberalismo lhes exigiu,  pressupõe uma outra União Europeia,  pressupõe uma outra China,  pressupõe uma OIT  juridicamente ao nível das outras Instâncias de Bretton Woods, pressupõe  pelo menos uma outra OMC em que nunca seja tomada como vantagem comparada a diferença de salários ou em que nunca seja admitida como elemento de concorrência a minimização fiscal como o faz a Irlanda ou a Roménia, pressupõe o desaparecimento puro e simples dos Paraísos Fiscais,  pressupõe uma outra ONU e com outros poderes talvez,  e que quer a OMC quer o Banco Mundial quer o FMI, quer a OIT  respondam, todas elas,  perante a ONU e não sejam fruto de decisões um dólar um voto como agora.  Como assinala Rodrik neste caso o vértice superior seria uma Economia Mundo,  com uma coordenação de políticas a nível mundial e a este nível seria o Estado Nação que se esfumaria que perderia peso.  Repare-se que a situação caracterizada por este lado, o lado esquerdo,  tem como vértice oposto,  exactamente o estado-Nação, a que é portanto incompatível. Mas a situação suposta por este lado é uma situação a considerar possivelmente apenas para os confins da História. 

 

Ou seja,  neste triângulo dito de incompatibilidades,  as situações limite possíveis são três e são definidas uma por cada um dos lados  e cada situação é definida pelas características dos seus vértices adjacentes,  com exclusão da característica que representa o terceiro vértice. Por isso se diz triângulo das incompatibilidades.

 

 

As características combinam-se duas a duas.  No nosso caso,  senhor Ministro, não há dúvidas,  por efeito da globalização,  por efeito da incompetência ou maldade das Instituições Europeias também,  aí temos o Estado Nação não ao serviço da democracia de que se afasta cada vez mais, mas ao serviço dos mercados de capitais e com a função bem especifica de que as normas produzidas no âmbito da ilegalidade legítima de que estes mercados se apropriaram sejam eficazmente executadas. No tempo de Bretton Woods as funções basilares eram garantir o valor interno e externo da sua moeda, garantir a reprodução da força de trabalho,  garantir o crescimento económico,  garantir a estabilidade e regulação nos diversos mercados, agora, a sua função é a de garantir a precariedade da sua força de trabalho, as altas taxas de remuneração dos investimentos especulativos, garantir a soberania dos mercados, em especial dos mercados financeiros, garantir a concorrência feroz ao nível dos preços,  garantir a desregulação de todos os mercados, com a máxima eliminação de serviços públicos, de bens públicos, a favor portanto da mercadorização máxima  da nossa sociedade.  É o preço a pagar para estar situado no lado direito do triângulo.  Maillard fica assim explicado,  mas nesta mesma base podemos ir um pouco mais longe e tracemos uma perpendicular a cada um dos lados com origem no vértice oposto. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficamos assim com três zonas,  a,  b,  c,  ditas situações não limite ou situações impuras,  embora ligadas aos lados da mesma forma que anteriormente foi feito.  Exemplo: na zona diremos que temos híperglobalização e estado Nação mas em que este não se submete por inteiro,  como o que agora faz Passos Coelho,  ou em que a globalização não atingiu o seu extremo por múltiplas razões possíveis.  Na zona b teremos como lado,  Sistema de Bretton Woods ou sistema de globalização controlada mas em que haja já claras interferências da globalização ou em que haja já alguma submissão dos Estados Nação aos mercados mundiais.  O equivalente poderia ser dito para a zona c, irrelevante aqui uma vez que na realidade a situação não se verifica.  Mas voltemos ao caso presente.  É evidente que o governo de Sócrates nos colocou na zona  a que chamamos zona a,  mas não é menos evidente,  e Passos Coelho afirma-o sucessivamente,  que a trajectória do actual executivo é colocarmo-nos exactamente sobre a linha,  sobre o lado que representa a submissão total do Estado Nação aos imperativos que lhes são,  nas costas dos eleitores,  claramente impostos,  em vez de ser uma reacção contra os mesmos.  Política de venda dos activos do país,  política de esvaziamento de futuro para as gerações mais novas  e com que cinismo ainda falam em nome delas! Senhor ministro,  já que falamos de futuro,  lembro-me ainda de livros que li e reli já de um menino pobre a ser o seu produto e que à universidade não deveria chegar,  de acordo com o elevador social que estão a avariar ainda mais,  lembro-me de um livro de Albert Jacquard,  lembro-me de uma frase em que este afirmava que cada um de nos,  os homens,  é o tecelão  da tapeçaria colectivamente feita onde se irá inscrever a palavra  amanhã,   e aqui uma pergunta lhe deixo eu: com estas políticas que tapeçaria fará para que nela os nossos jovens de hoje e já amanhã possam escrever condignamente a palavra Futuro?

 

 

Senhor Ministro,  senti esta sua decisão pelo que ela eticamente foi,  como um roubo aos jovens do meu país,  mas senti-a igualmente como um roubo aos meus próprios bolsos mesmo que nada disto directamente me diga respeito.  Com efeito,  deixo aqui um pequeno apontamento da vida deste país e de outros tempos.  Era uma vez,  nos tempos que a memória quer queimar,  no início dos anos sessenta,  um jovem que doente e com a doença dos pobres de então,  acrescente-se,  veio ao liceu Pedro Nunes fazer uma oral de Filosofia.  A oral terá corrido muito bem,  os professores perguntaram ao jovem em questão o que fazia,  a que este respondeu que era operário fabril mas que estava em casa,  na sua aldeia,  com baixa médica por tuberculose.  Os professores do júri ofereceram-lhe cada um deles uma prenda como recordação,  os alunos presentes na sala saíram para o felicitar e alguns mesmo para o abraçar.  Mais tarde,  a esse jovem contaram-lhe a seguinte história,  aqui resumida ao mínimo.  Dois pais falam das suas filhas e dos seus exames junto a uma caixa do Banco Totta,  perto da Cervejaria Portugália,  em Lisboa.  Um deles dispara para o outro: a minha filha falou-me ontem num aluno operário que doente veio fazer exame.  Um exame diferente.  Ela disse-me que gostava de o ajudar.  O outro retorquiu: a minha filha contou-me o mesmo e expressou a mesma coisa.  Gostava também de o ajudar,  mas não sabemos quem ele é? O caixa,  Vítor Martins (Vicente) de seu nome,  que a conversa ouvia,  respondeu: eu sei quem é.  Falaram e dessa conversa,  nasceu um prémio: 200 escudos por mês,  cem de cada um destes dois pais,  na condição de ser anónimo.  Esse prémio religiosamente foi recebido,  mas ao contrário do senhor Ministro,  aqui a palavra deles foi durante anos mantida,  cumprida,  até que um dia a libertei,  quando esse subsídio dispensei.  Valeu bem mais que a palavra de um Ministro da democracia agora simulada,  da Democracia agora capturada,  a caminho de vir ser a seguir também ela amordaçada.  Desse prémio,  fala este texto,  senhor Ministro,  fala este rascunho de bilhete postal,  pois talvez sem ele,  não lhe estaria eu agora a escrever.  Compreenda-se pois a quem estas palavras ler,  o sentimento que ganhei face á decisão do actual Executivo em os nossos jovens estarem a roubar.

  

Senhor Ministro,  repito,  sinto raiva,  sinto desprezo,  sinto vergonha,  pelo Governo que nós temos,  pelo Governo de que faz parte,  dadas as políticas que está a executar,  disponível para numa cavalgada wagneriana para o abismo a todos nos atirar.  Em tempos escrevi ao Ministro da Economia onde afirmava:

 

 

Londres,  aí está a mostrar um dos caminhos possíveis,  por aqueles que destas medidas ou equivalentes estão a ser vítimas,  Londres também aí está a mostrar o caminho do poder: mais austeridade e mais repressão para as vítimas das suas medidas,  mais censura e eventualmente a privação das liberdades de contestar o governo,  a liberdade de barrar a internet,  simplesmente a liberdade de aprisionar a própria democracia.  É certo,  que Londres,  de repente,  parecia uma cidade à deriva onde tudo era permitido.  Por um lado e primeiro que todos os outros,  estiveram e estão os saqueadores (looters) de luva branca,  os senhores dos dinheiros e das leis,  traders,  especialistas financeiros,  analistas e contabilistas de alto coturno,  especuladores,  directores de hedge funds,  banqueiros e outros afins,  os que a tudo têm direito e,  por isso,  tudo lhes é permitido no maior paraíso fiscal do mundo.  Depois dos com direito a tudo terem tudo saqueado do que lhes era consentido,  aparecem de repente,  os outros looters,  os outros saqueadores,  os que irromperam como saindo do nada e a tudo querer ou a tudo não querer mas a tudo destruir.  E estes,  os sem direito a nada, sem direito a futuro, sem direito a trabalho estável, irromperam em Tottenham,  noutros bairros também, noutras cidades igualmente, arrasando, destruindo, saqueando, mostrando as consequências da polarização extrema,  ou seja,  em que de um lado estão os “looters” da grande burguesia,  habitantes de Chelsea ou Kensigton ou de outros lugares de mais privilégio ainda e do outro os habitantes de Tottenham ou de outros bairros similares.  Como o dizia o Daily Telegraph,  “a decadência moral da nossa sociedade é tão forte no topo como na base,  para quem os looters nada mais fizeram que copiar na base o que as elites fizeram no topo. ” O escândalo Murdoch,  as relações do poder que dia a dia se vão mostrando à luz do dia são disso mais um fiel exemplo.

 

 

Algumas simples perguntas se deixa no ar sobretudo isto,  sobre esta polarização extrema a que o neoliberalismo conduziu a Inglaterra,  dá-nos a ideia do realismo do que estamos a afirmar: que foi feito aos saqueadores (looters) que no Parlamento inglês roubaram descaradamente os dinheiros públicos? Nada! Que foi feito dos saqueadores que na City roubaram o mundo inteiro e em particular a Inglaterra? Nada! Que foi feito ao bónus chorudos dos traders da City? Nada! Que foi feito sobre os pára-quedas dourados de muitos senhores da City que se reformaram aos 50 anos com reformas que são por cada ano uma verdadeira fortuna? Nada.  O primeiro-ministro de então,  Gordon Brown,  foi-lhes pedir esmola,  é este o termo,  foi-lhes pedir que aceitassem apenas metade do que eles próprios estipularam nos contratos e a resposta foi a que se esperava. Não, foi a resposta. Tudo se passou como se o dinheiro lhes fosse devido pelos nossos serviços, ou seja, porque o merecem sempre quaisquer que tenham sido os resultados destes mesmos serviços,  que neste caso foi colocar a Inglaterra à beira da bancarrota! Que lhes foi feito? Nada.  Impunidade total a todos estes senhores,  senhores dos dinheiros públicos,  senhores da City,  senhores das leis,  foi o espectáculo degradante que a velha Albion ofereceu ao mundo.

   

(Continua)  

 

Leave a Reply