OS HOMENS DO REI – 61 – por José Brandão

D. JOÃO V (reinou de 1706 a 1750)

Nascido em 1689, no Paço da Ribeira, foi cognominado de Magnânimo, ou Magnifico, este último pelos seus panegiristas ao celebrarem-lhe as excessivas prodigalidades e despesas sumptuárias, quase exclusivamente em pompas e obras de mera ostentação de soberba e megalomania. Nos seus acessos de megalomania, o rei português, que os seus contemporâneos apelidaram de Magnânimo, costumava exibir esta frase bem significativa: «Meu avô deveu e temeu, meu pai deveu, eu não temo nem devo».

 

Por morte de seu pai, em fins de 1706, sobe ao trono D. João V, com 18 anos incompletos e é aclamado rei a 1 de Janeiro de 1707, ainda em plena Guerra da Sucessão de Espanha. Apesar das suas amantes e amásias não terem fim, cedo chegou a hora de o monarca casar. E uma coisa não impedia a outra. A escolhida foi, na linha das preferências políticas já manifestadas por seu pai, uma austríaca, a arquiduquesa Maria Ana de Áustria.

 

O casamento realizou-se em Viena a 9 de Junho de 1708 e chegaram a Lisboa a 26 de Outubro, esperando-os imponentes festejos. Para tanta festança e opulência, as minas de ouro do Brasil, entre outras, forneciam os meios, e a fama destas vidas ultrapassava fronteiras. O gosto do monarca pelas artes e pelas literaturas, ainda que só pela ostentação, chegou ao ponto, de mandar emissários por todo o mundo em busca de raridades e preciosidades. Por conveniência política, D. João V casara com a desajeitada e feia arquiduquesa da Áustria, sete anos mais velha que ele, galante moço de 19 anos.

 

Amargurados lhe foram, pois, os sete primeiros anos de reinado, mesmo em apuros financeiros e miséria económica, a despeito da aleluia de esperanças com que, nos fins do reinado de seu pai, a auspiciosa notícia da descoberta de minas de ouro no Brasil alvoroçara a Corte e o Reino. D. Maria Ana não conseguia dar-lhe filhos, apesar das múltiplas tentativas nesse sentido, ao ponto de a considerarem estéril para prover um sucessor ao trono. O monarca fez, então, um voto de, se conseguisse descendência, mandar construir um monumental convento, o que veio a acontecer. Um ano depois, em 1712, nascia D. Maria Bárbara, concretizando a profecia de Frei António de S. José. A princesa casou, mais tarde, com Fernando V de Espanha.

 

Em 1714 nascia D. Pedro de Alcântara, morto em criança, e dois anos depois viria o sucessor do trono, D. José. Cumpriu-se a promessa e a construção movimentou meios humanos e materiais como até então nunca visto. O resultado é de todos conhecido e pode ser visto em Mafra. Só a partir de então, e já tranquilizado em 1714 com o nascimento de um herdeiro, D. José, verdadeiramente começava D. João V, aos 24 anos, a gerir os negócios do reino, em puro regime de absolutismo real. D. João V era galanteador, muitíssimo amigo de damas e donzelas, não só enquanto poeta mas também como voluptuoso. As suas aventuras não tinham fim, sempre emolduradas com o mais puro requinte. Rodeava toda a sua actividade de grande pompa e esplendor, imitando em tudo os hábitos de Luís XIV e da sua corte. Mandava vir as suas fartas cabeleiras de França, assim como os fatos, bálsamos e essências. Delicado e super-supersticioso na religião, a esta estendia os seus gostos sumptuosos, imitando o modelo francês. Por volta de 1728, D. João V, que havia conseguido da Santa Sé a criação do Patriarcado de Lisboa e o respectivo título de cardeal inerente ao de Patriarca, corta relações com ela por ter sido negado o chapéu cardinalício ao Núncio Apostólico em Lisboa.

 

As relações são reatadas em 1731. Em 1748 o Papa dá a D. João V e aos seus sucessores o título de «Fidelíssimo». D. João V vivera como um grande monarca, apesar das dificuldades financeiras que por vezes atormentavam os seus ministros. Os seus embaixadores (o elegante e sagacíssimo D. Luís da Cunha, que em Paris apodaram de quinto evangelista dos portugueses, o vaidoso, mas enérgico, conde de Tarouca, o desconfiado e finíssimo Alexandre de Gusmão, em cujo epistolário se desenham flagrantes retratos dos homens do tempo) brilhavam nas cortes estrangeiras, não só pelo talento e pelo tacto, mas pela sumptuosidade da representação.

 

É o reinado da galantaria em Portugal, como em França o foi o de Luís XV. E nem faltou a faceta mulherenga do monarca, a que não escapou nem uma serva do Senhor, a famosa Madre Paula, do Convento de Odivelas, que recebia o régio amante em aposentos sumptuosos, condignamente decorados à francesa. D. João V, frequentador assíduo do convento de Odivelas, onde mantinha várias amantes que ia substituindo conforme lhe parecia, ao topar com a jovem Paula ficou loucamente apaixonado por ela. Nessa altura, já a famosa freira se havia tornado amante de D. Francisco de Portugal e Castro, conde de Vimioso, e que pouco antes tinha sido agraciado com o título de marquês de Valenças. Paula passou a ser amante do rei que era trinta anos mais velho do que ela. Não contente ou satisfeito com o que já tinha, atira-se a D. Madalena Máxima Miranda de quem teve D. Manuel Gaspar, que veio a ser arcebispo de Braga.

 

Ao seu vasto curriculum juntou igualmente D. Luísa Inês Machado Monteiro, que lhe deu um D. António muito dedicado à música. Os bastardos varões viviam em conjunto no palácio de Palhavã e daí serem alcunhados de «os meninos de Palhavã». À lista juntou-se ainda uma senhora muito nobre e estimada, mas contudo casada, D. Luísa Clara de Portugal, alcunhada como «Flor da Murta» devido à casa a que pertencia. O marido, para além da desonra, viu-se ainda diminuído de «partes íntimas» por ordem do rei, enquanto esposa de D. João, lhe dava uma filha, D. Luísa, que viria a professar. Mulheres de todas as castas e origens gabavam-se dos bons momentos passados na real alcova, desde a actriz Gamarra à cigana Margarida do Monte. Como «não há bela sem senão», os excessos vitimaram D. João. Atacado pelos excitantes que ingeria e pelo esgotamento ficou, paralisado do seu lado esquerdo, não lhe valendo os banhos aconselhados pelos mais ilustres médicos do reino. Depois de uma vida de fausto e devassidão, deixou atrás de si gastos na ordem dos cento e vinte e cinco milhões de cruzados, noventa e sete mil e quatrocentos e setenta moedas de ouro, mil quinhentos e trinta marcos de ouro, doze milhões de diamantes, vinte e duas caixas de ouro em barra e duas de ouro em pó.

 

Apesar de tanta riqueza, o erário público ficou seriamente empenhado à altura da sua morte, em 31 de Julho de 1750. Mas apesar disso, os hábitos luxuosos e oponentes tinham criado raízes entre nós, não havendo luxo que não se tentasse. Não morreu muito velho o monarca. Contava sessenta e um anos. Deixou o seu nome ligado a importantes fundações nos domínios da cultura literária e artística. O juízo de Alexandre de Gusmão era um tanto exagerado, quando, mordaz, escrevia para Paris, a Luís da Cunha, que, para esta Corte, o importante eram os peditórios dos capuchos, os sinos, os milagres e os sermões. Manuel Azevedo Fortes e Alexandre de Gusmão foram homens do rei D. João V.

 

Manuel de Azevedo Fortes (1660-1749)

Nasceu em Lisboa, em 1660, mas foi em Espanha que, desde os seus 10 anos, no Colégio Imperial, em Madrid, e depois na Universidade de Alcalá de Henares, fez sua preparação para os estudos de Engenharia que completou no Colégio de Plessis, em França. Passando à Itália, concorreu em Siena a uma cátedra universitária, que conquistou. Regressando a Portugal cheio de prestígio, é nomeado sargento-mor das batalhas do rei e engenheiro-mor do Reino. D. João V estima-o, porque também ele é tocado pelo novo clima espiritual europeu e mais de uma vez abria os olhos às luzes do século. O próprio Azevedo Fortes assim no-lo retrata na Oração Académica pronunciada em presença de Sua Majestade, indo a Academia ao Paço em 22 de Outubro de 1739. Em 1744, imprimia Manuel de Azevedo Fortes a sua Lógica Racional, Geométrica e Analítica, queixando-se que os estudantes não tiravam grande vantagem no estudo da Lógica durante um ano nas escolas, referindo igualmente que pessoas com craveira intelectual também concordavam em como esse estudo servia mais à confusão das ideias do que ao aperfeiçoamento das operações do entendimento. Esta obra mereceu grandes elogios do seu censor, o padre jesuíta Manuel de Campos, como se pode ler: «tem esta obra, três qualidades que raramente se acham juntas nos livros desta profissão: Brevidade, clareza e escolha. Pelo que respeita à brevidade, faz-se digno de particular admiração ver como o Autor em tão pequeno volume recolhe toda a vastidão da filosofia, sem que haja parte dela notável que nele se não ache ou tocada ou resumida. Pelo que toca à clareza, também se faz digno ainda de maior admiração ver como o breve, a quem comummente acompanha o escuro, aqui se faz claro; os pontos mais subtis e mais dificultosos são tocados com tal arte, as matérias perplexas com tal desembaraço que a qualquer engenho medíocre se fazem perceptíveis; ajudando muito a mesma brevidade à clareza, pela selecção de espécies e prolixidade que evita, que é o que ordinariamente se reprova na filosofia vulgar. Pelo que respeita à escolha não há dúvida que a do Autor é madura e mui conforme com a razão; não somente pelas questões que omite como desnecessárias, senão também pelas opiniões que segue nas que toca, acomodando-se sempre ao que se representa mais verosímil, e menos fantástico». A sua Lógica Racional, Geométrica e Analítica, que reduz a lógica das escolas, ou a escolástica, à clara simplicidade do método geométrico, em vernáculo acessível aos engenheiros, e até às damas. Nesse livro são louvado os filósofos modernos, e de Aristóteles se diz que é traído pelas traduções arábicas. Dedica-o ao infante D. António, cujo retrato vem gravado na página do rosto, e é com ele que o autor diz na dedicatória que muito se entreteve na crítica à lógica escolástica. Acusa os nossos filósofos de ignorarem a Geometria, não passando além da Aritmética ordinária, em sua obsessão dum aristotelismo deformado por Averróis, Avicena e outros comentadores. Como o filósofo, crê Azevedo Fortes na irredutível dualidade extensão e pensamento e, como ele, crê na capacidade cognoscitiva do homem, pela veracidade de Deus, criador do nosso aparelho sensorial, adequado à apreensão da realidade. Dois anos depois, apareceram as Cartas de Verney com seu Verdadeiro Método de Estudar. Era catapulta mais vigorosa, de mais numerosos e variados embates e, porque vinham de Itália, com mais ímpeto e menos contemplação nos golpes. Dai o acordar das oposições e o escândalo da polémica – que mais generalizou o interesse pela obra e lhe ganhou o triunfo. Azevedo Fortes morreu cm 1749.

 

A seguir: Alexandre de Gusmão

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