Memórias da Guerra – por Rui Rosado Vieira*

*(Preâmbulo do livro, do historiador Rui Rosado Vieira, EM ANGOLA UNS SEMEARAM VENTOS OUTROS COLHERAM TEMPESTADES – Memórias da guerra – 1961-1964, a lançar no próximo dia 3 de Março) 

O ano de 1961 marcou o início de um período de mais de uma década de rebeliões nas então denominadas Províncias Ultramarinas, de trágicas consequências para a vida de largos milhares de jovens portugueses e suas famílias.

 

Entre Janeiro e Março daquele ano eclodiu em Angola um conjunto de episódios violentos contra a presença da administração portuguesa, que havia de levar ao surgimento de uma guerra de guerrilha. Este tipo de conflito, posteriormente, estendido à Guiné e a Moçambique, terminou em 1974 e conduziu, pouco depois, à independência daqueles territórios africanos.

 

O autor destas linhas esteve entre os muitos milhares de jovens que ao longo de treze anos, em vagas sucessivas, embarcaram em Lisboa rumo a Luanda para de armas na mão combater o que naquele tempo se apelidava de terrorismo. É dessa experiência de perto de dois anos e meio em Angola – acontecimento de excepcional relevância no meu tempo – que aqui pretendo deixar testemunho pessoal.

 

As páginas que seguem são a narrativa de alguém que sentiu profunda indignação face aos bárbaros morticínios cometidos em Março de 1961 pela União das Populações de Angola (UPA) – movimento nacionalista dirigido por Holden Roberto – contra as populações brancas e os seus empregados bailundos, residentes nas fazendas de café a nordeste de Luanda, e, simultaneamente, ao arrepio das ideias dominantes na época, considerava legítimo que Angola, tal como acontecia com os países africanos que na década de 1960 se haviam libertado do colonialismo, reunia condições para sem recurso à violência se tornar nação independente e onde, em igualdade de deveres e direitos, todos fossem cidadãos de primeira – negros, mestiços e brancos.

 

Por julgar que podia explicar a origem das opiniões e das atitudes expressas ao longo do texto que se segue, assim como dar notícia das dificuldades de reintegração na vida em Portugal, decidi ampliar a presente narrativa para os períodos imediatamente anteriores e posteriores à minha participação na guerra, revisitando o ambiente social da terra natal e as vivências pessoais antes e depois daquela singular experiência.

 

Seguindo à máxima de que uma imagem vale mais que mil palavras, foi digitalizado um conjunto de documentos, alguns dos quais só descobri vários anos depois do meu regresso a Portugal, que se incluem no final do livro sob a designação de Adenda.

 

Para a redacção do presente trabalho apoiei-me, com particular incidência, em notas contidas num Diário com mais de trezentas páginas manuscritas, elaborado ao longo do tempo de permanência em Angola, e em cerca de centena e meia de cartas que enderecei a vários familiares em Portugal, que tiveram o cuidado de as conservar até ao meu regresso. Com o mesmo objectivo utilizei um álbum com quinhentas e oitenta fotografias, a preto e branco, de lugares e gentes de Angola, devidamente datadas e identificadas, das quais perto de nove dezenas ilustram as páginas do presente livro.

 

Também consultei as duas resenhas históricas sobre a actividade do Batalhão, produzidas pelos seus responsáveis máximos em Janeiro de 1964. Isto é, uma pequena brochura impressa em Malange, oferecida a cada um dos elementos da Unidade pouco antes de regressarmos a Portugal, e a cópia a papel químico, de um caderno de cinquenta páginas dactilografadas, depositado no Arquivo Histórico Militar em Lisboa.

 

Finalmente, para aclarar certas dúvidas que me assaltavam, recorri aos Arquivos da PIDE/DGS depositados na Torre do Tombo.

 

O que adiante se descreve – um relato na primeira pessoa de sucessos presenciados há quase meio século – não resultou da necessidade de combater traumas ou de destruir fantasmas causados pela participação em actos de violência extrema, mas antes do desejo de deixar registo de um acontecimento que atingiu de forma trágica largas centenas de milhares de jovens do meu tempo.

 

As recordações que aqui se reúnem mais não são que a perspectiva de quem, obrigado a suportar a experiência nefasta da guerra colonial, cedo se apercebeu que a chamada política ultramarina portuguesa, ao discriminar as populações negras e contrariar o processo descolonizador, já então concretizado na Ásia e em quase toda a África, estava destinada ao fracasso. Pontos de vista a que o futuro se encarregaria de dar razão, para desfortuna dos que perderam a vida ou ficaram incapacitados, bem como dos que apressadamente tiveram de abandonar a terra em que eles e seus antepassados haviam nascido e construído suas vidas.

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