Recebi-o, enviado pelo Instituto de Ciências Sociais, da Organização Mundial para a Educação e a Unidade-ORMEU, da UNESCO, a que eu presidia. Não tinha trabalho, convidei-o a ser mais um docente do Instituto. Mas, que docente! Corria o ano de 1966. Fugia da perseguição irracional do Presidente do Brasil, Marechal Castelo Branco. Esteve meses em prisão e submetido a tortura. Antes, o mandei, descansar Mas Paulo era Paulo Freire: o seu melhor descanso era ensinar. Começou de imediato. Eu tinha 24 anos e ia casar e partia para a Grã-Bretanha para estudos de pós graduação. O Paulo, talvez trinta e oito ou quarenta. Este texto é das minhas lembranças do nosso trabalho de alfabetização em conjunto. Eu era advogado, o Paulo teimou e fui a estudar Antropologia, e Antropólogo sou, ao longo da minha vida, desenvolvendo a especialidade que aprendi dcomele: Etnopsicologia da Infância. Os anos passaram. Estava na aldeia galega de Vilatuxe, a morar na casa do meu amigo Herminio Medela e família, um amigo fraterno, Ramón Maiz, foi-me visitar para me avisar que Paulo tinha falecido a 1 de Maio desse ano de 1997. Chorei por ele. Está narrado na biografia História de Vida, que escrevi para Herminio: Como era quando não era o que sou. O Crescimento das crianças, Profedições, Porto, Portugal. Livro sempre comigo. Eu era Don Raúl, o Herminio, meu compadre avô.
A primeira parte do título deste texto vá em itálico, porque é um livro do Paulo, que está comigo, como o do meu compadre-avô. Paulo costumava dizer: é preciso retirar da cabeça o que eles sabem, isso é alfabetizar.
1. Uma noite.
Eramos um grupo de sete ou oito pessoas. À noite. Quando os camponeses têm que sair de casa e entrar numa sala de aulas. Eramos sete ou oito; seis deles, calados e de vista serena, sobre a mesa. Inquilinos chilenos, picunche, huilliche, ou com um certo ancestral ibérico. Mãos no colo, chapéus na cabeça, manta sobre o corpo – um poncho. E eu perguntava: “os vossos filhos vão à escola?”, Eles, olhos fixos na mesa, dizem “Sim”. Monossilábico. Difícil de falar. Difícil de conversar. E eu, “a qual?” e eles ” a do fundo”. Silêncio.
E pergunto: “e os filhos do patrão, também?”, eles reagem vivamente: “Não, não, nem pensar! Eles vão a um colégio bom, lá longe, em Santiago. Aí onde nem castelhano se fala…!” O que era dito com orgulho e brilho nos olhos. E eu, “Mas, de certeza, os vossos filhos aprendem também outras línguas”. “Não os nossos filhos não, são muito burros”, com raiva respondem dois. “Burros?”, pergunto. Responde um, “feitos por nós!”. “E para quê?”. “Para que saibam trabalhar, pois”, diz o mais calado, esse ao qual eu endereço a pedrada “Burro como o senhor que nem sabe castelhano…” diz com reticência.
Acrescenta o mais ousado “que os meus pais não me tinham deixado ir à escola, para trabalhar com eles”, “e para eles” acrescento, “porque havia que dar trabalho para o patrão, pois iñor”, me diz com força. “Não sabe que se não dermos ao nosso pai tempo para trabalhar nas terras do senhor, o pai, a mãe e nos, íamos à rua?” “Ir à rua, ir à rua, ser despedido?” pergunto, e todos dizem “pois”. “Então o patrão é má pessoa!”, sai espontaneamente da minha da minha boca. “Oiça, não, ele até nos dava presentes para as nossas mulheres, e pão às sextas-feiras”. “Presentes e pão, de favor?”. “Pois”. “De favor”, reitero. Silêncio. Calam. Pensam. Calo. Silêncio. Pego no giz, escrevo “o patrão é bom” e desenho uma figura de homem com uma auréola na cabeça e digo “o São Patrão”, e todos riem, e às gargalhadas quando eu reitero a santidade do homem. Esse que ia “às Uropas todos os anos” aí onde “eu nunca tenho colocado os pés”. Conclui depois de duas horas de compararmos a vida deles com a do proprietário do latifúndio, o “patrão, dono do fundo”. E assim, pela noite dentro, até repararem como é que eram usados e abusados. Um ressonar me diz que um já dorme, e fechamos a sessão.
2. As noites.
Das sessões de debate de conceitos chave na epistemologia rural: trabalho, salário, lei, viagens, lazer, filhos, escola, aviões, família, outros. Genealogia deles e do proprietário; contexto deles, e do proprietário; descanso deles, e do proprietário. Sindicato. Direitos. Cadeia. Polícia. Deus. Ordem. Disciplina. Igualdade. A lei do mais forte. A estratégia do mais fraco. O medo e a liberdade. Tecnologia. Animais. Como curar esses. Como fugir da maquinaria, que bate e parte os ossos. Método comparativo, na observação participante do convívio quotidiano nas suas casas, de noite a noite, períodos prolongados de convívio. Método relativo, quer para eles entender, quer para eu entender. Relativização do sentir mais forte, o etnocentrismo, esse ideal de nos, que não permite a comunicação, hierarquicamente organizada. E as noites. E as noites que permitiam essas noites de debate e transferência de entender o real contextualizado de cada um, de esses compatriotas separados pela Historia da formação do seu estrato. Essas noites, quando reunia sob árvores do mato, aos homens das mulheres com as que eu falava durante o dia, enquanto andava e andava pelos caminhos rurais. Essas mulheres que davam chá e perguntavam sobre a nossa vida pessoal.
Esses homens que apareciam quando ninguém podia vê-los, chapéus sobre a face, lenços para esconder, disfarçarem, o queixo. O medo á divindade da lei policial do patrão, a divindade que representava a pessoa do patrão – o proprietário de terras e pessoas. Essa frase, que tanto ouvi durante meses de trabalho de campo, proibia que se identificassem uns aos outros. Até nem falavam, porque “sabe-se lá se o senhor, ou qualquer um, não vai contar isto ao patrão, depois, pui inhor” diz um, na sua casa. Eu, inexperiente, percebo que não sabem que têm direito à terra, que podem denunciar o patrão e ficar com quintas do latifúndio, serem coproprietários e deitarem fora o grande absolutista fundado e instituído pela invasão ibérica do século XVI. Inexperiente. Pelos meus anos. Pelo costume de classe que ia comigo. Inexperientes eles. De pensar que podiam agir e avançar para dentro da produção conjunta da terra própria. Inexperientes.
De que a lei permitia essa mudança. Inexperientes da mudança e a temer a punição divina e terrena. Inspirado, levo a passear pela zona ao Bispo, meu amigo, sem Mitra, anel ou báculo. De preto, o que devia ser roxo. E aos Padres. Para dizerem Missa no meio das pessoas e na sua língua natal, sem latim, a língua Romana Universal. Inspirados, agimos mão na mão de Paulo Freire, durante horas, as ideias e os gestos, para procurar uma alternativa possível para hábitos históricos rígidos no tempo, pelo tempo acumulado ao longo da cronologia. Estruturados no ideal, na cultura rural, na cultura urbana.
Noites dos anos 60, primeiro, e da época da Sua Excelência, o Sr. Presidente da República Dr. Salvador Allende, depois. Quando os inquilinos camponeses, quer huilliche, ou picunche, ou mapuche mestiço, quer chilenos geneticamente misturados, ou chilenos com um certo ancestral ibérico, nenhum deles sabia entender de que tinha poder político. A rigidez cultural da Historia, o não permitia. Para o nosso desespero, feito serenidade no relativismo cultural do trabalho de campo.
(Continua)