Globalização e Desindustrialização – 4ª Série. Por Júlio Marques Mota.

Capitulo I. Retratos da Desindustrialização

 

1.9  Como os Estados Unidos perderam o trabalho de fabricação dos iPhone – I

 

CHARLES DUHIGG and KEITH BRADSHER

 

Quando Barack Obama se juntou às luminárias de topo para jantar em Silicon Valley na Califórnia em Fevereiro passado, foi solicitado a cada convidado que colocasse uma questão ao presidente.


Mas, quando Steven P. Jobs, da Apple falou, o presidente Obama interrompeu-o com uma pergunta pessoal: o que seria necessário fazer para que os iPhones fossem produzidos nos Estados Unidos?


Há não muito tempo atrás, a Apple vangloriava-se de que os seus produtos eram feitos nos Estados Unidos. Hoje, poucos são. Quase todos os 70 milhões de iPhones, 30 milhões de iPads e 59 milhões de outros produtos da Apple vendidos no ano passado foram fabricados no exterior.


Porque é que não se produzem nos Estados Unidos? Perguntou Obama.


A resposta de Jobs foi inequívoca. “Os empregos já não vão voltar”, disse ele, de acordo com outro convidado do jantar.


A questão levantada pelo Presidente centrou-se sobre uma convicção central na Apple. Não é exactamente porque os trabalhadores são mais baratos no exterior. Em vez disso, os directores da Apple acreditam que a vasta escala de fábricas no exterior, bem como a sua flexibilidade e o maior empenho dos trabalhadores como também as capacidades profissionais dos trabalhadores estrangeiros tudo isto têm até ultrapassado as suas congéneres americanas de tal modo que o “Made in EUA” deixou já de ser uma opção viável para a maioria dos produtos Apple.


A Apple tornou-se uma das empresas mais conhecidas, mais admirados e mais imitadas no Mundo, em parte através de um domínio inflexível e inultrapassável sobre as operações realizadas a nível global. No ano passado, os seus lucros foram mais de $ 400.000 de lucro por empregado, mais que a Goldman Sachs, Exxon Mobil ou Google.


Entretanto, o que tem irritado o Presidente Obama assim como muitos economistas e decisores da política económica é o facto de que a Apple – e muitos dos seus pares nas indústrias e serviços da alta tecnologia – estão, quanto à criação de empregos nos Estados Unidos muito longe do empenho na criação de empregos que tiveram outras empresas famosas quando estavam no seu apogeu.

 

 

 

 

 

 

A Apple emprega 43.000 pessoas nos Estados Unidos e 20.000 no exterior, uma pequena fracção dos mais de 400.000 trabalhadores norte-americanos da General Motors na década de 1950, ou das centenas de milhares na General Electric em 1980. Muitas mais pessoas trabalham para a Apple: este valor deve estar próximo das 700 mil pessoas, como engenheiros, como trabalhadores, industriais fabris ou ainda  como instalações de cadeias de montagem de iPads, iPhones e outros produtos da Apple. Mas quase nenhum deles funciona nos Estados Unidos. Em vez disso, trata-se de pessoal que trabalha para empresas estrangeiras na Ásia, Europa e noutros lugares, em fábricas de que quase todos os designers de material electrónico do Ocidente dependem para produzir construir os seus produtos.

 

“A Apple é um bom exemplo de como é tão difícil criar empregos para a classe média actualmente nos EUA “, disse Jared Bernstein, que até ao ano passado era um dos conselheiros económicos da Casa Branca.

 

 

Se isto é o auge do capitalismo, devemos então estar muito preocupados. 


Os directores da Apple dizem que o facto de estarem a ir produzir no exterior é, neste momento, é sua única opção. Um antigo director descreveu como é que a empresa dependeu de uma fábrica chinesa para renovar a fabricação do iPhone poucas semanas antes de o produto estar à venda nas prateleiras das lojas. A Apple tinha redesenhado o ecrã do iPhone, já na última da hora, forçando mesmo uma revisão urgente na linha de montagem. Os novos ecrãs começaram a chegar à fábrica perto da meia-noite.

 

 

Um capataz imediatamente despertou 8.000 trabalhadores que dormiam nos dormitórios da empresa, segundo este mesmo executivo. Cada um destes trabalhadores recebeu um biscoito e uma chávena de café, foi mandado para um posto de trabalho na cadeia de montagem, para uma  estação de trabalho, e dentro de meia hora começaram um turno de 12 horas seguidas na montagem dos ecrãs em quadros chanfrados. No espaço de 96 horas, a fábrica estava a produzir mais de 10.000 iPhones por dia.

 

 

“A rapidez e a flexibilidade são impressionantes”, diz o executivo. “Nenhuma fábrica na América consegue ou pode fazer isso”.

 

 

Histórias similares poderiam ser contadas sobre quase qualquer outra empresa de produtos electrónicos – e a externalização também se tornou comum em centenas de outras indústrias, incluindo a contabilidade, os serviços jurídicos, os serviços bancários, a produção de automóveis e produtos farmacêuticos.

 

 

Mas enquanto a Apple está longe de estar sozinha, esta oferece uma janela para sublinhar e muito que o sucesso de algumas empresas proeminentes não se traduziu num grande número de empregos criados internamente, nos Estados Unidos. Além do mais, as decisões da empresa colocam questões mais amplas sobre a forma como a América das grandes empresas, das grandes corporações leva a que os americanos assim como as economias nacionais estejam todos a nível global cada vez mais interligados.

 

 

“As empresas antes sentiam a obrigação de apoiar os trabalhadores americanos, mesmo quando não isso não era a melhor opção financeira”, disse Betsey Stevenson, o economista-chefe do Departamento do Trabalho, até Setembro do ano passado. “Essa forma de sentir e agir desapareceu. A maximização dos lucros e a ideia de eficiência deram cabo da generosidade. “

 

 

As empresas e outros economistas dizem que essa noção é ingénua. Embora os americanos estejam entre os trabalhadores com mais formação a nível mundial, o país deixou de formar suficientemente as pessoas ao nível da formação intermédia que as fábricas precisam, dizem os directores destas grandes empresas.

 

 

Para prosperarem, para se desenvolverem, as empresas argumentam que precisam de deslocalizar a produção onde esta possa gerar lucros suficientes para continuar a poder manter os custos da inovação. Fazer o contrário seria correr o risco de perder ainda mais empregos para os trabalhadores americanos ao longo do tempo, como é evidenciado pelas legiões de fabricantes nacionais outrora orgulhosos – incluindo a GM e outros – que têm diminuído com o aparecimento de concorrentes muito ágeis.

 

 

À Apple foram fornecidas diversos excertos da reportagem organizada pelo New York Times para este artigo, mas a empresa, que tem uma reputação de secretismo, não quis sequer comentar.

 

 

Este artigo é baseado em entrevistas com mais de três dezenas de funcionários da Apple actuais e antigos, entre outros, com empresas subcontratadas – muitos dos quais pediram o anonimato para proteger os seus empregos – assim como economistas, especialistas em produção industrial, especialistas em comércio internacional, analistas de tecnologias, investigadores universitários, funcionários de fornecedores da Apple, concorrentes e dirigentes de grandes empresas, e autoridades governamentais.

 

 

Em privado, os directores da Apple dizem que o mundo é agora um lugar de muita mudança e que é um equívoco medir a contribuição de uma empresa simplesmente pelo registo do número dos seus funcionários – embora estes observem que a Apple emprega agora mais trabalhadores nos Estados Unidos do que antes.

 

 

Estes dizem ainda que o sucesso da Apple tem beneficiado a economia como um todo, dando mais capacidade de acção aos empresários e criando postos de trabalho em empresas como nas operadoras de telemóveis e nas empresas de transporte de produtos Apple. E, finalmente, dizem ainda que resolver o problema do desemprego não é a sua função, não é o seu objectivo.

 

 

“Nós vendemos iPhones em mais de uma centena de países”, disse um actual director  da Apple. “Nós não temos a obrigação de resolver os problemas da América. A nossa única obrigação é fazer o melhor produto possível. “

 

 

‘Eu quero um ecrã de vidro’.

 

 

Em 2007, um pouco mais de um mês antes de se ter programado a data de colocação do iPhone nas lojas, Jobs chamou um punhado de lugares-tenentes ao seu gabinete. Durante semanas, ele tinha andado com um protótipo do iPhone no bolso.

 

 

Jobs irritado ergueu o iPhone, dobrando-o para que todos pudessem ver as dezenas de pequenos riscos a estragarem o seu ecrã de plástico, de acordo com alguém que participou da reunião. Steve Jobs tirou então o molhe de chaves das suas calças de jeans.

 

 

As pessoas irão andar com este telefone no bolso, disse. As pessoas também andam com as chaves no bolso. “Eu não vou vender um produto que fica cheio de riscos”, disse ele, muito tenso. A única solução seria em vez disso a utilização de ecrã de vidro que não se risque desta forma. “Eu quero um ecrã em vidro, e quero-o perfeito. Têm seis semanas para isso.”

 

Depois de um executivo ter deixado a reunião, Steve reservou um voo para Shenzhen, na China. Se Jobs queria o ecrã perfeito, não teria então nenhum lugar para onde ir, teria de ficar.

 

 

Durante mais de dois anos, a empresa tinha estado a trabalhar num um projecto – cujo nome de código era Purple 2 – que apresentava sempre as mesmas questões em cada fase do projecto: como é que re-imagina de modo completamente o telemóvel? E como é que pode projectá-lo para que venha a ter a mais alta qualidade possível – com um ecrã que não se risque, por exemplo – enquanto garante simultaneamente que milhões deles podem ser fabricados de forma rápida e suficientemente barata para obter um lucro significativo?

 

 

As respostas, quase sempre, foram encontradas fora dos Estados Unidos. Embora as componentes difiram entre as diferentes versões, todos os iPhones contêm centenas de peças, em que cerca de 90 por cento são fabricadas no exterior. Os semicondutores tecnologicamente de ponta vieram da Alemanha e de Taiwan, as memórias da Coreia e do Japão, os painéis e os circuitos vieram da Coreia e de Taiwan, enquanto os chips vieram da Europa e os metais raros vieram da África e da Ásia. E tudo isso foi montado na China.

 

 

Nos seus primeiros dias, a Apple normalmente não olhava para além do seu próprio quintal quanto á procura de soluções na área de fabrico. Poucos anos depois da Apple ter começado a construir o Macintosh em 1983, por exemplo, Steve Jobs vangloriava-se de que se tratava de “uma máquina que era feita na América.” Em 1990, enquanto Jobs estava a fazer correr NeXT, que acabou por ser comprada pela Apple, ele  terá dito a um repórter “eu estou tão orgulhoso da fábrica como estou do computador.” Mais tarde, no final de 2002, os principais executivos da Apple, ocasionalmente, gastavam duas horas para noroeste de sua sede para visitar a fábrica iMac da empresa em Elk Grove, Califórnia.

 

 

Mas em 2004, a Apple já se tinha em grande parte reorientado para a fabricação no exterior da América. Na base desta nova orientação estava Timothy D. Cook, que era um perito das operações da Apple, que veio a substituir Steve Jobs como Presidente executivo em Agosto passado, seis semanas antes da morte de Jobs. A maioria das outras empresas americanas de produtos electrónicos já tinham deslocalizado a produção para o estrangeiro e a Apple, que na época estava a lutar com dificuldades, sentiu que tinha que agarrar todas as oportunidades.

 

 

Em parte, a Ásia era atraente, porque os trabalhadores semiqualificados tinham salários bem mais baixos. Mas não era bem isso que motivava Apple. Para as empresas de alta tecnologia, o custo do trabalho é mínimo em comparação com a despesa feita em compra de peças e de gestão da cadeia de abastecimento que reúnem componentes e serviços de centenas de empresas.

 

 

Para Cook, o interesse na Ásia ” resultava de duas coisas”, disse um antigo alto-funcionário da Apple. As fábricas na Ásia “podem aumentar ou reduzir a escala de produção muito mais rapidamente” e “as cadeias asiáticas de abastecimento ultrapassaram as americanas nos Estados Unidos “. O resultado é que “não podemos competir a este nível “, disse este director.

 

 

O impacto de tais vantagens tornou-se evidente logo que Jobs exigiu ecrãs de vidro em 2007.

 

 

Durante anos, os fabricantes de telemóveis tinham evitado o uso de vidro porque exigia uma grande precisão no corte e no polimento, o que era extremamente difícil de se conseguir. A Apple já tinha seleccionado uma empresa americana, Corning Inc., para a fabricação de grandes painéis de vidro reforçado, de vidro de alta resistência. Mas descobrir como cortar os painéis em milhões de pequenos ecrãs iPhone exigia que se encontrasse uma fábrica que estivesse disponível para o corte com centenas de peças de vidro para serem utilizadas experimentalmente e um exército de engenheiros de nível médio. Isto, só por si, custaria uma fortuna simplesmente a preparar.

 

 

Então chegou uma proposta de uma fábrica situada na  China.

 

 

Quando uma equipa de técnicos da Apple visitaram a fábrica, os seus proprietários já estavam a construir  uma nova área de fabrico.. “Isto é para ser utilizado no caso de nos darem o contrato “, disse o director, de acordo com um ex-executivo da Apple. O governo chinês concordou em subscrever os custos para numerosas indústrias e estes subsídios também deram para a fábrica de corte do vidro. Tinham um armazém cheio de amostras de vidro disponíveis para a Apple, gratuitamente. Os proprietários também disponibilizaram engenheiros quase sem nenhum custo. Os proprietários da fábrica tinham construído dormitórios no próprio local para que os empregados estivessem disponíveis 24 horas por dia.

 

 

A fábrica chinesa foi contratada.

 

 

“A cadeia total de fornecimento está agora na China “, disse um outro antigo alto-quadro da Apple. “Por exemplo, precisa-se de umas mil juntas de borracha? Isto faz-se já aqui, na fábrica ao lado desta, já ao sair da porta. Por exemplo, precisa-se de um milhão de parafusos? Na fábrica do quarteirão seguinte, arranja-se É preciso um parafuso um pouco diferente? No máximo, leva três horas. ”

 

(Continua)

 

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