David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Ao escrever estas linhas, advirto que sendo um escritor muito conhecido, com numerosos estudos e teses académicas sobre a sua obra, não seria um texto meu que contribuiria para que não seja esquecido, risco, aliás, que não corre. Há um pormenor, que me leva a escrever sobre ele, a voltar uns anos atrás e ir ao encontro da recordação que dele conservo – um pormenor chamado amizade.
Embora David Mourão-Ferreira tenha sido director do serviço da Fundação Gulbenkian em que trabalhei durante dez anos, não nos cruzámos ali, pois saí em 1971, quando o director era ainda Branquinho da Fonseca. Conhecera-o na Faculdade de Letras, estive com ele em reuniões da Associação Portuguesa de Escritores, mas era uma relação cordial, mas mais ou menos formal.
Quando lancei o meu primeiro romance, «Talvez um Grito», dado que ele fizera parte do júri que o distinguira, fui à Gulbenkian pedir-lhe que fizesse a apresentação que seria no Solar do Vinho do Porto – imediatamente se disponibolizou, sem qualquer espécie de hesitação. Fez uma apresentação magnífica, que tenho gravada em vídeo, mas, malhas que o mercado tece, num standard que já se não usa, o Beta, e não sei se a conseguirei recuperar. Leu da maneira expressiva que o caracterizava, e valorizando-as, como só ele sabia, algumas páginas do livro.
Fomo-nos encontrando, almoçámos algumas vezes na Gôndola, um restaurante que ficava perto do meu escritório, na Av. António Augusto de Aguiar e a uns passos do edifício da Gulbenkian onde estava instalada a direcção do Serviço de Bibliotecas. Num desses almoços, propus-lhe que dirigisse uma história da literatura portuguesa (não pôde aceitar, pois estava com mil e um compromissos, mas forneceu-me uma série de pistas de grande utilidade). Em 1991, no III Congresso dos Escritores Portugueses, realizado no Laboratório de Engenharia Civil, aconteceu ficarmos lado a lado. Conversámos muito. Pareceu-me que a sua saúde já não estava bem.
Na Primavera de 1996 encontrámo-nos casualmente no restaurante do Hotel Continental onde na época frequentava uma tertúlia que ali reunia (e reúne) às quartas-feiras – Rui de Oliveira, Leça da Veiga, Pedro Godinho, O Jaime Camecelha, entretanto falecido – estávamos costas com costas e eu não o conheci, pois estava muito magro, quase calvo, acabava de chegar de uma clínica de Londres, desfigurado pela doença e pela quimioterapia. e ele chamou-me. Disse-me sorrindo que a sua vida estava por dias ou por semanas. Protestei e ele continuou a sorrir. Fiquei devastado. Em Junho morreu.
Fui à Basílica da Estrela, onde o corpo estava em câmara ardente. Não sei por que motivo os escritores ali vão sempre parar (o Palácio Galveias não seria mais adequado?). Não era o caso do David, mas, por exemplo, o Orlando da Costa e o Luiz Pacheco, comunistas e ateus, numa basílica…
A nora, a ex-apresentadora da RTP, Margarida Mercê de Mello, leu alguns poemas dele. Um, dadas a circunstância, era muito comovente, dizia: – «Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio…» No cemitério dos Prazeres, Amália Rodrigues chorava copiosamente. David Mourão-Ferreira, um grande poeta, um grande professor e intelectual. E, acima de tudo isso, um homem de uma excepcional e humana capacidade de ser generoso.
Um bom amigo. Nasceu neste dia.