Um sistema bancário a repensar. Por Michel Rocard.

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

 

 

O debate é enorme por toda a parte: como sair da situação? Distorcido nos Estados Unidos por uma recusa cultural em aplicar impostos e em aceitar a intervenção pública, distorcido na Europa pelas dúvidas que afectam o grau de solidariedade conforme se mostra com a actual gestão do euro, este debate confronta a ortodoxia financeira, os defensores do pagamento integral da dívida, e sobretudo da dívida pública, com os macroeconomistas, keynesianos e mesmo muitos não-keynesianos, que sabem que a dívida pública constitui poder de compra, que é ele mesmo a chave do crescimento.


O debate é: “Qual é o máximo de economias públicas compatíveis com a manutenção de um estímulo público ao crescimento? E este máximo é compatível, se não com o pagamento regular por toda a parte de todas as dívidas havidas, o que à evidência é impossível, ou então pelo menos com uma satisfação ou uma compreensão suficiente dos mercados para evitar o tsunami financeiro que se seguiria a um ou a vários incumprimentos maciços? “E se este problema não tiver solução?


Nós vivemos, desde a degradação do triplo A americano por Standard and Poor’s, não uma quebra na bolsa, não uma clara recessão, mas uma inibição financeira psicológica em relação primeiramente aos nossos bancos europeus. Perante os perigos da Primavera, dois acordos foram passados, um entre o presidente Obama e o seu Congresso, o outro entre os Estados-Membros da zona euro. Foram muito difíceis de negociar. Para certos comentadores, isto foi um milagre. E tiveram êxito: não houve nenhuma situação de incumprimento na Primavera nem no início do Verão, nem americano nem grego. Triunfo? De forma nenhuma! Houve, pelo contrário, a queda bolsista onde nos encontramos hoje. Porquê? Porque os mercados sabem, como todos os operadores e os comentadores, que estes acordos regularam apenas problemas imediatos, e não os problemas de longo prazo.


O que se passa é uma redução de ritmo por apreensão, e não a verdadeira crise, que não sendo mais do que potencial seria bem mais grave. A emissão de liquidez, pela via do financiamento dos bancos, continua. Mas estes retornaram ao comportamento de 2008: não se emprestam mais entre eles, por falta de confiança, ou quase. O financiamento interbancário passa cada vez mais pelos Bancos Centrais, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Federal Reserve (FED), o que os fragiliza em caso de tempestade financeira.


Os fundos especulativos continuam a prosperar, cria-se mesmo novos fundos, não se fez nada ou quase nada para limitar o volume dos mercados de produtos derivados virtuais, ou seja desligados de qualquer relação com a economia real. E a liquidez emitida, nas condições em que o é, não se orienta em nada para os investimentos produtivos ou para o financiamento do crescimento, mas permanecem à espera de colocação nos mercados financeiros.


Os sectores ricos em bolhas potenciais multiplicam-se, tendo sempre à cabeça o imobiliário, menos o americano porque esse mercado está em pior situação que em 2007, mas os espanhóis ou chineses, algumas matérias-primas e diversos compartimentos dos mercados financeiros. Tudo isto pode rebentar em qualquer momento e muito rapidamente. E, desta vez- o resgate financeiro pela garantia pública, e, por conseguinte, no final ser assim salvo pelo contribuinte, já não será mais possível, as dívidas públicas são já demasiado elevadas e os Parlamentos recusarão. Serão os fundos soberanos que estarão na primeira linha. Tenho mesmo a impressão que a amplitude deste perigo é tal que provoca uma inibição das palavras ou, o que é o mesmo, provoca uma inibição do pensamento. Os comentários financeiros, por toda a parte, referem-se apenas à próxima data de pagamento, não se ousa mais abordar o problema financeiro global.


Ora é efectivamente este que é necessário abordar, e sobretudo tratar. É ainda possível evitar o rebentar das próximas bolhas financeiras, mas só sob a condição de se tomar rapidamente medidas vigorosas. Ou então o rebentamento das próximas bolhas será de um forte efeito recessivo. O problema – chave é o reforçar todas as seguranças e diminuir a amplitude dos fluxos financeiros especulativos possíveis. Tudo isto é realizável, assegurando regularmente todos os prazos, nomeadamente os de uma qualquer dívida pública em causa? É nisso que eu já não acredito.

 

Em primeiro lugar, no dia 4 de Setembro, o Supremo Tribunal da Alemanha tornou público o seu julgamento sobre a questão de se saber se a criação do Fundo Europeu de solidariedade e de gestão do BCE em antecipação à sua criação efectiva está bem conforme com a Constituição alemã. Contrariamente a muitos receios, este Tribunal respondeu sim. Mas acrescentou que, para confirmar esta constitucionalidade, era necessário que, aquando de cada nova operação de salvamento, o governo alemão consulte o seu Parlamento. Quantos meses de nova paralisia tudo isto implica? Em segundo lugar, a Finlândia corre o risco de obter um endurecimento das condições feitas aos Gregos.

 

Se é este o caso, no estado de cólera em que se vai encontrar este povo, pode-se duvidar que nenhum governo grego se possa segurar sem o apoio do exército… Esta reflexão triste é também válida para Portugal e ou para a Irlanda, e ou para outros países, maiores… Até onde isto irá?


Em terceiro lugar, há alguns riscos que efectivamente uma vez criado o Fundo europeu de apoio financeiro este não seja feito sem que haja dificuldades: as ratificações pelos dezassete membros da zona euro não são automaticamente garantidas, e pode-se temer também que os compromissos políticos tomados a 21 de Julho não sejam executados ou só o sejam parcialmente.

 

Por último, não parece possível a nenhum dos países da Europa profundamente endividados pagar até ao último cêntimo e regularmente capital e juros sem estar a amputar as suas despesas públicas de investimento e o seu apoio ao crescimento. E se o crescimento regride, todos nós o sabemos, as receitas fiscais também regridem, e o pagamento da dívida também, em simultâneo. O incumprimento que isto acarretaria, talvez mais tarde, não deixa de ser mais provável.


Neste caso é de tsunami financeiro que se pode estar à espera. Se tudo isto é verdade, o problema muda um pouco de natureza. Deve-se então andar menos à procura de evitar um drama financeiro por demasiado provável do que procurar limitar a sua dimensão, a sua profundidade. Há numerosas medidas possíveis e desejáveis, entre as quais uma das mais evidentes consiste em reintroduzir, de modo urgente, a separação entre os bancos de depósito, que devem ser proibidos de toda e  qualquer actividade de  risco, e os bancos que trabalham sobre todos os ramos de  financiamento do risco, incluindo o investimento, que devem financiar as suas operações sobre fundos próprios ou sobre capitais dedicados. Amputar-se-ia então de uma grande parte a liquidez disponível para os movimentos especulativos, e proteger-se-iam as economias reais.

 

Não se tem talvez necessidade de regulação feita na base de muitos constrangimentos a este respeito. Já alguns bancos americanos e um ou dois europeus que trabalham de facto com este comportamento. Mas é necessário que seja alargado a todos os outros, e que os bancos que deixam as actividades de risco apresentem balanços e endividamentos próprios, ou seja garantidos sobre créditos seguros e conhecidos, e sejam objecto de notações específicas. Uma regulação internacional tornaria tudo mais rápido que o consenso…


O mundo bancário europeu recusa esta ideia. É compreensível. A mobilização de fundos que vem dos depósitos para operações correntes de risco é extremamente remuneradora. E é verdade que hoje e mais do que nunca temos necessidade de bancos sólidos. Mas o risco é demasiado grande. É de um pára-raios que falo aqui e estamos em tempos de forte trovoada.


Naturalmente, isto quer dizer que a massa enorme dos créditos duvidosos, nesta separação, vai estar somente do lado dos bancos que tratam com o risco. Será necessário anular uma notável proporção. É o preço do risco, dado que não se pode pagar toda a dívida, o que é necessário sacrificar, e certamente não será o crescimento. E se alguém deve pagar, o que parece fatal, é mais equitativo que sejam os compradores de risco do que serem os contribuintes ou, sobretudo, os desempregados.


Não esqueçamos a história: esta ideia vem de Franklin D. Roosevelt, que a colocou em prática em 1933 obtendo do Congresso a lei Glass-Steagall Act, contra o parecer dos bancos da época, certamente. Era uma ordem de separação das instituições bancárias, conforme são confrontadas com o risco ou não, gerir depósitos que exigem não o ser.


Foi introduzida na Europa depois do fim da guerra. Evitou-nos as crises financeiras graves durante quase sessenta anos. Foi abolida na Europa sob a pressão alemã na década de 80, e nos Estados Unidos foi abolida no fim dos anos 90. Desde que as fusões são autorizadas e os estabelecimentos bancários se têm tornado multifunções, nós encadeamos as crises financeiras graves em cada quatro ou cinco anos. Certo, é uma questão mundial…

 

Alguns países emergentes levantam a questão. A França pode ter aqui um papel decisivo. De resto, os bancos franceses, enormes em activos financeiros mas fracos em capitais próprios, estão mal equipados em caso de tempestade. É necessário protegê-los, mesmo contra a sua vontade e contra os seus interesses de curto prazo. A Europa deveria dar aqui o exemplo, o que não seria suficiente, mesmo assim mas seria decisivo. Mas não se pode aí chegar senão pelo comportamento exemplar.


São a Comissão Europeia e o BCE que deveriam tomar urgentemente nas suas mãos estes assuntos. A eficácia real está apenas a este nível. Por fim, a prevenção das catástrofes financeiras e das recessões dramáticas faz parte da nossa segurança. Existe um Conselho de Segurança das Nações Unidas, e se aí se vota, sem estar à espera de improváveis consensos. Será necessário acabar por assim fazer!


Michel Rocard, Un système bancaire à repenser, Le Monde, 3 de Outubro de 2010.

 

 

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