Quando Nápoles mata os seus filhos, por Jean-Paul Mari, Le Nouvel Observateur

Selecção, tradução e nota de leitura por Júlio Marques Mota

 

 

 

Nota de leitura


Aos meninos deste mundo, desta época, aos meninos que, como o jovem paquistanês Iqbal, são assassinados pela máquina de guerra que a União Europeia permitiu, que a União Europeia diariamente dinamiza, com os seus canhões de longo alcance disparados para quase sobre todos os povos desta Europa hoje tão sofrida. E essa máquina de guerra tem um nome, a política de austeridade, tem um corpo de directores-executivos, os mercados financeiros, tem um corpo de altos funcionários, as Instâncias Europeias, vulgo Bruxelas, tem um corpo de funcionários menores, por vezes, seus servos que a coluna vertebral perderam se é que alguma vez a tiveram, os governos nacionais, e tem já muitos milhões de vítimas, os milhões de trabalhadores em situação precária e os muitos milhões de desempregados jovens que nem trabalho precário encontram, muitos deles já irremediavelmente perdidos face a um emprego que nunca virão a ter.


A Itália ao nível do imediatamente pós-guerra, como se uma guerra tenha agora havido, a Itália do pão centeio que muitos de nós já comemos, a Itália a vender ao desbarato o seu futuro materializado nos seus filhos que agora deixa implacavelmente destruir, na rua e sem escola, na rua e com direito a viver do crime. No seculo XXI e sobre a Itália do século XXI, um pequeno texto aqui vos deixo. 

 

Júlio Marques Mota

 

 

Quando Nápoles mata os seus filhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Será que ainda se lembram dos filmes na Itália do pós-guerra? A fome, a pobreza, as crianças vendidas ou condenadas a roubar? Hoje – hoje mesmo! – Centenas de crianças devem de novo voltar abandonar a escola. A Itália está em crise. Na maioria das casas degradadas dos bairros populares, o pão de centeio voltou de novo a aparecer. Pão negro, pão de má qualidade, pão nada caro e que se conserva por muito tempo. Em Nápoles é chamado o “pão de oito dias”. Aqui existem famílias sustentadas por pais desempregados, sem dinheiro para alimentar os seus familiares e até mesmo nem para pagar os livros escolares dos seus filhos…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Então as crianças trabalham, ilegalmente como é evidente, e como os adultos. 10 a 12 horas por dia, seis dias por semana, por 50 euros a semana. Estes são contratados desde as 7 da manhã, “são empregados de boutique “, são marçanos de supermercado, são empregados  em salão de cabeleireiro como  aprendizes,  são vendedores nos mercados, mãos pequenas nas empresas de couro ou de  belos artefactos de pele, produtos de luxo, destes sacos ou malas  preciosas que se encontram nas montras de Paris ou noutros  lugares.

 

 

 

 

 

 

 

 

Mais escola, mais futuro. Estes meninos nunca serão professores ou especialistas em computadores. Eles têm 8, 10, 12, 14 anos ou mais, têm traços já bem marcados pela vida e têm ombros dos adultos, bem à vista mas ninguém se parece ralar com isso. Fora, vivem pelas ruas, e as ruas de Nápoles são ferozes. Depois de um ou dois anos de trabalho, as crianças acabam por ficarem nesta vida e vão depois ganhar dez vezes mais como vigias para os traficantes e como revendedores de coke e assassinos, depois. Conhece-se bem  a sequência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

Educador de rua, Giovanni já não aceita em seguir passivo os enterros das crianças do bairro. Ele é um homem irritado. Contra a máfia, contra a cidade e contra o Estado que se está a afundar. Agora trabalha, e desde há cerca de um ano e meio, sem receber. Como todos os educadores de Nápoles, ele teve que se endividar para continuar a sua actividade profissional. Giovanni criou uma associação “O tapete de Iqbal”, o nome de um menino escravo paquistanês assassinado porque este se atreveu a  revoltar-se.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todos os dias, o educador percorre bairros  como Barra, considerados pelos clãs da máfia napolitana como seu domínio e onde, agora, já mais nenhum funcionário municipal ousa sequer entrar. Aqui, vende-se drogas, rapta-se, mata-se. E é aqui que o educador procura  recuperar as crianças para voltarem para a escola. Um desafio com ares de parecer ser mais um suicídio que outra coisa. Giovanni criou mesmo uma escola de circo, com a qual forma as crianças  e organiza espectáculos  nos fins de semana.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Nariz de palhaço, cuspidores de fogo,  grandes pernas de pau, o público aplaude. E à noite, depois da representação, Carletto, Marco, Ciro, Carlo antigos marçanos ou jovens assassinos da máfia, repartem a receita do espectáculo. O suficiente para sair da rua, para pagar os livros e ainda para ajudar a família. O suficiente para escapar da maldição dos bairros de Nápoles. O director de uma escola ocupada por toxicodependentes ofereceu mesmo as instalações do estabelecimento, para criar uma escola de circo, desde que eles pudessem restaurar o local.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A história seria bonita se ela não corresse o risco de ficar sem sequência. A nova lei de finanças aprovada em 2009 arruinou os orçamentos dos municípios e Nápoles decidiu acabar com qualquer apoio às associações. Sem subsídios, sem mais dinheiro, não há mais actividades sociais.  Giovanni tem apenas um mês para encontrar meios com que fazer viver o “tapete de Iqbal”. Apenas um mês. Caso contrário, a associação terá de fechar as suas portas. E os filhos de Nápoles irão retomar o caminho da rua.

 

Jean-Paul Mari, Quand Naples tue ses enfants. Le Nouvel Observateur, 28 de Março de 2012.

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