EM COMBATE – 25 – por José Brandão

SER MANGUÇO foi ver desfilarem perante si, como cenas de um filme, pedaços de vida em que se misturavam e se sucediam mil coisas diversas: um camuflado desbotado; uma G3 sempre à mão de semear; horas e horas, dias e dias – séculos! – em cima de uma incomoda GMC, uma Berliet, um jipão, um Land-Rover, ou empoleirado num incrível UNIMOG, sob nuvens espessas de poeira, ou patinando perigosamente em cada palmo de picada enlameada; caminhar penosamente através do capim, ora verde e tenro como uma seara de trigo verde, ora seco, duro e agressivo como um milheiral maduro, afastando-o com as mãos como quem nada; atravessar mata fechada, onde às vezes não se avistava uma nesga de céu; a preparação das operações, a progressão para o objectivo, e depois a arrancada final, após pesada e angustiante expectativa em que cada ruído, o rufar de uma asa de ave, o estalar de um ramo, enchiam o corpo de suor e estremecimentos; o esgotante regresso ao local de reembarque nas viaturas – para daí a dois ou três dias, talvez até daí a horas, tudo recomeçar, num círculo infernal.

 

SER MANGUÇO foi conviver de perto com gente de uma raça diferente, duma cor diferente, e, depois de certo tempo, ter a noção de que essa gente, diferente de nós, sem dúvida, constituía um mundo, com as suas relações, a sua lógica, a sua filosofia, desde a maneira de cultivar a terra, construir uma cubata, cartar e dançar, viver em sociedade, ao modo de encarar o fenómeno da morte. Gente que falava também Português, e que ouvia os nossos desafios de futebol da Metrópole e, em muitas outras coisas, se identificava também muito connosco. Não, “eles” não eram “gente de segunda”, e muito menos “crianças grandes”. Eram gente tal e qual como nós, embora com um modo de ser e de viver próprio, nem superior nem inferior ao nosso – apenas diferente. Surpreendiam-nos até, a cada passo, com a sua sabedoria de experiência feita; e afeiçoavam-se-nos, revelando por vezes, mesmo uma dedicação comovedora.

 

Este viver num País diferente, num continente diferente, onde o Tempo e a Distância não contam, sem fronteiras entre o aquém e a além-vida; este mergulho numa cultura diferente da nossa, por ela muito influenciada e que por sua vez a influenciou, deu azo a que o Manguço adquirisse uma perspectiva diferente, e mais correcta, das pessoas e das coisas, isto é, de si próprio e da vida. Porque compreender os outros é abrir o caminho para uma melhor compreensão de nós próprios.

 

SER MANGUÇO foi, nas horas de calmaria, descobrir o interesse das pequenas coisas e nelas encontrar aspectos tão curiosos como se grandes fossem. Foi apreciar o verdadeiro sabor do convívio, da conversa, das amizades, como nos velhos tempos dos nossos avós, à lareira quando não havia televisão, nem rádio, nem mesmo energia eléctrica. Foi assistir à descoberta de um mundo de coisas que habitualmente passariam despercebidas por não haver tempo para as notar ou apreciar. Como quem se debruça para ver como vivem numa sociedade perfeita: as formigas, as térmitas ou as abelhas; como quem coloca uma gota de água na lamela de um microscópio e descobre que aquela gota é um verdadeiro universo onde nascem, vivem, lutam e morrem seres vivos.

 

SER MANGUÇO foi a alegria indizível do regresso, um regresso já não ao que havia sido, ao antigamente, mas apenas se havia estado. Porque já não se era o que havia sido. Quem regressava era uma pessoa diferente, de corpo e alma curtidos ao Sol de mil dificuldades, de mil contingências, de mil dores de sensações fortes e de algumas alegrias muito grandes. Alegrias, sim! porque umas das conquistas dos Manguços no mato, na guerra, na distância, foi, ali naquele isolamento, naquele desconforto, naquela tensão nervosa permanente, verem despontarem, na terra pantanosa que uma guerra sempre é, rebentos de esperança, de consolação íntima, de alegria até, rebentos que conseguiam sobreviver e ganhar força e corpo. Foi ver, sobretudo sentir, que a fealdade dos cactos brotam flores lindíssimas. A questão é ver, é saber ver; ou então, sabendo onde os cactos estão – ir lá vê-los!

 

SER MANGUÇO é sim, uma noção mais exacta do Bem e do Mal, por parte de quem fez a guerra, decerto, mas nela não incorporou ódio. Quem pode compreender, senão um Manguço, por exemplo, como se pode, após canseiras mil, capturar um inimigo, e depois restituí-lo à liberdade e reintegrá-lo num Mundo de equilíbrio? Quem pode compreender, como um Manguço, o que é encontrar na mata, no decorrer de uma operação, um pretito perdido, sujíssimo, esquelético, apático, pele a despontar sobre ossos e estes a despontarem por todo o corpito, uma cara toda olhos, um verdadeiro cadáver adiado; embrulhar o pequeno num lençol impermeável e leva-lo às costas até à viatura ou até ao quartel, lava-lo, alimenta-lo, trata-lo com desvelo paternal, vê-lo pouco a pouco vencer a morte, e assistir ao seu renascimento, ao seu regresso a ser humano normal?!

 

SER MANGUÇO é esta certeza consoladora de um dever cumprido, quando tantos buscam pretextos para a ele se eximirem. É ter vivido mil vidas, é ter morrido mil vezes e mil vezes ter renascido, valorizado. 

 

SER MANGUÇO é ter aprendido, numa dura experiência, que a vida não é aquilo que temos, mas fundamentalmente aquilo que somos, é a consciência de que, se não estivermos em paz connosco próprios, não estaremos em paz com os outros ou com a vida.

 

SER MANGUÇO é, finalmente, participar nos encontros anuais de pessoas que, diferentes umas das outras, vencem o tempo e a distância para se encontrarem e partilharem essa coisa maravilhosa que é o calor humano SER MANGUÇO é, sendo cada qual da sua terra, pertencerem todos a uma mesma terra – a aldeia Manguça – a que certamente se referia a velha cantiga: NA MINHA ALDEIA NÃO HÁ ÓDIOS, MAS ESTIMAS, TEM-SE AMOR PELA VIDA ALHEIA, SÃO TODOS PRIMOS E PRIMAS. Primos e Primas! É isto, sim, aquilo que todos nós hoje somos de verdade! UMA FAMÍLIA!

 

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A seguir: Companhia de Caçadores 669

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