MUNDO CÃO – A FÉ E OS IMPOSTOS – por José Goulão

 

 

Não é novidade para qualquer um de nós que a fé é convertível em dinheiro, harmonizando-se na perfeição com as tendências económico-políticas dominantes – direi melhor, obrigatórias – e sendo até pioneira na matéria. A relação é milenar, se recordarmos de passagem o polémico episódio entre Jesus Cristo e os vendilhões do Templo.

 

Também não é segredo que há mil e uma maneiras e uma inesgotável imaginação para fazer render a fé, o que será absolutamente legítimo se a apropriação se der no âmbito do funcionamento interno de cada culto e religião. Tratando-se de uma relação directa entre a hierarquia da fé e os devotos não haverá nada a dizer, o que não proíbe cada um de nós de ter as suas ideias próprias sobre o modo como às vezes as coisas se processam. Mas fiquemos por aqui.

 

O caso fia mais fino quando é o Estado a financiar religiões, o seu funcionamento, a conservação dos seus templos, certas formas de educação religiosa. Recordo que os Estados modernos se dizem laicos, as constituições reconhecem-no – excepto a da Hungria, que ainda agora andou séculos para trás – os cidadãos são livres escolher a sua religião ou de não ter nenhuma, isto é, os actuais conceitos põem a fé no sítio certo, na sua relação entre o homem e a divindade em que acredita ou não.

 

Uma coisa, porém, são as leis e as Constituições, outra algumas práticas que reflectem a incapacidade de Estados e religiões para separarem o que continuam a achar que Deus uniu.

 

Citei o caso da Hungria, esse agora directamente assumido. Mas vejamos  o caso mais flagrante de enviesamento das normas constitucionais, que é o espanhol.

 

A revista Europa Laica revelou recentemente que o Estado Espanhol financia a Igreja Católica com cerca de 10 mil milhões de euros anuais, verba que nos revela um preço muito alto para a fé. O senhor Rajoy, chefe do governo, que bem poderá sê-lo em nome de Deus e do rei tal o fervor com que o seu partido se relaciona com os altares, acaba de anunciar cortes sociais de 40 mil milhões de euros, fazendo com que até ao fim do ano um em cada quatro espanhóis esteja desempregado e à mercê dos caprichos salariais do patronato. Se somarmos os 10 mil milhões de financiamento da Igreja Católica com os 16 mil milhões que a casa real custa anualmente ao país teríamos uma boa poupança de 26 mil milhões nos 40 mil milhões arrancados aos bolsos dos cidadãos. Digamos que não se restabelecendo a justiça, os sacrifícios ficariam um pouco melhor divididos.

Há um outro aspecto fulcral que demonstra como este funcionamento é absurdo. Todos os espanhóis descontam 0,7 por cento do seu IRS para a Igreja Católica; todos pagam as recuperações das igrejas, o ensino em escolas públicas (que em Ceuta e Melilla se trata de conversão de infiéis), a assistência religiosa na cadeias, o “fomento cultural” católico, seja isso o que for. Quando digo todos os espanhóis estou a citar os católicos, os judeus, os muçulmanos, os budistas, os ateus, os agnósticos, ninguém escapa com a sua “limosna”, a esmola que faz chegar através do aparelho de Estado dito laico. Para dirigentes que não deixam escapar uma oportunidade para tecer considerações depreciativas sobre o fundamentalismo islâmico  podemos concluir que estamos perante uma rivalidade entre fundamentalismos, o que mais não é do que um verdadeiro espírito de cruzada. Aliás não é caso único.

 

Também não é a única situação absurda, como sabemos. Os republicanos espanhóis são obrigados a sustentar a ostentação grotesca e insultuosa da casa real, o que não é mais do que outra contribuição – indirecta, digamos – para a Igreja Católica ou não fosse Sua Majestade, apesar de todos os constitucionalismos, uma espécie de incarnação divina para o Estado Espanhol, como por exemplo o Rei Abdallah o é para a Arábia Saudita.

 

É verdade que a fé e o dinheiro que nela se investe terá supostamente recompensas na vida eterna, sendo por isso uma aposta talvez de risco reduzido e a longo prazo. Apesar disso, seria preferível que os Estados deixassem esses investimentos circunscritos às bolsas religiosas e curassem de minorar a penúria e a crueldade a que estão a submeter os cidadãos nesta sua passagem terrena, seja qual for a relação de cada um deles com a religião. 

 

 

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