GIRO DO HORIZONTE – Lapsos – por Pedro de Pezarat Correia

 

 

 

No GDH anterior trouxe à nossa reflexão o discurso simulado dos políticos em especial a propósito de declarações de Barack Obama. Porém, a lamentável sequência de declarações dos últimos dias dos governantes que, no nosso país, em tempo de azar nos calharam em rifa, obriga-me a voltar ao tema. Com o olhar agora virado para dentro.

 

De facto estamos perante um discurso simulado sistemático, desde a campanha eleitoral de 2011, na qual, tudo o que despudoradamente se prometia, dissimulava a deliberada intenção de não cumprir, pior, de fazer exactamente o contrário que muitas vezes era o mesmo que se condenava ao adversário. E sempre com um sentido pré-definido, ideologicamente orientado por uma opção neo-liberal que reforçasse, nas relações de produção, uma dinâmica em benefício do factor capital e à custa do factor trabalho. Sob a capa de um discurso tecnocrático, pseudo-valorizando a eficácia, do culto da mitologia do mercado, é isso que está em marcha.

 

Na última página do Le Monde Diplomatique (Edição Portuguesa) de Março passado, Mário de Carvalho assina um artigo notável no estilo certeiro a que nos habituou. Com o título “A semântica das atitudes”, alerta para o que aí vem: «O poder patronal instalou-se, organiza a pilhagem, abate as resistências (…) Organiza-se o saque dos rendidos. A direita venceu no terreno após ter avassalado os discursos (…) O objectivo já esteve mais longe. Assoma no horizonte. Fechar o parêntesis aberto em 1974. Tudo pelo patrão, nada contra o patrão». Todo o texto é uma denúncia acutilante do discurso simulado. Transcrevo apenas uma curta passagem: «Fale alguém com desassombro e é sempre acusado de “demagogia”. Procure-se distinguir o Bem do Mal, salta logo a acusação de “maniqueísmo”. Operem-se distinções, reservas, hierarquizações, e acode o “mesmismo”, boçal e espesso, a nivelar as dunas. Interesse público? Todos querem o interesse público. O bem geral? Todos querem o bem geral. Generosidade? Tão distribuidinha como o bom senso cartesiano. Desinteresse? Há lá alguém mais benemérito do que um banqueiro? Mais pundonoroso do que um C.E.O? Mais honrado que um especulador?»

 

Acontece que o governo, nomeadamente o primeiro-ministro, mero executor doméstico e visivelmente pouco preparado das regras definidas pelos verdadeiros centros de decisão sedeados no exterior, deixa transparecer total desconforto e insegurança perante uma situação que sente escapar ao seu controlo e o afasta das metas que se propôs, mas a cuja lógica não consegue fugir. E então multiplicam entrevistas, repetem declarações, insistem em debates, debitando opiniões descoordenadas e anárquicas reveladoras de perturbante desnorte. Como denominador comum o recorrente recurso ao discurso simulado. A Vitor Gaspar, o mais desajeitado orador do governo, penoso de ouvir, sobrou a tarefa de transformar mentiras em lapsos, não se coibindo de tentar fazer dos seus concidadãos parvos. Procurou gracejar frisando que o ano de 2015 se segue imediatamente ao ano de 2014. Américo Tomaz não diria melhor. Mas, até aí, simulou desastradamente o discurso, pois ele não ignora que é, para todos, óbvio, que a importância de 2015 não está em seguir-se a 2014 mas em ser ano de eleições. Tudo para esconder o fracasso: a austeridade paralisa a economia, não gera riqueza, não há mercado milagroso que valha, não há retorno fiscal e não há dinheiro. A este lapso expresso outros lapsos simulados se sucedem no discurso do governo, sobre as reformas antecipadas, sobre a liquidação do Estado social, sobre o desemprego galopante, sobre a legislação laboral e a iniquidade na repartição dos sacrifícios, sobre o clientelismo, sobre os escândalos e a corrupção.

 

O maior partido da oposição recorre também ao discurso simulado para adiar o corte com as suas contradições, com um passado no governo que só formalmente diferiu do actual e com um presente condicionado por um acordo de que foi principal negociador e primeiro subscritor. Também carrega os seus lapsos discursivos.

 

E o povo português? Até quando e como vai suportar este sinistro percurso, este discurso simulado de lapso em lapso até ao colapso final?

 

1 Comment

  1. Excelente síntese da situação de Portugal, que nos trouxe o Pezarat Correia. Permito-me sublinhar que a única preocupação do governo e dos partidos que o sustentam parece ser a de aumentar os lucros da banca e fortalecer o poder financeiro. Reforçam assim o poder dos grupos económicos que nos dominam há tanto tempo, à custa, claro, das classes médias e baixas.

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