Nação valente e imortal – António Lobo Antunes

 

 

 

António Lobo Antunes  Nação valente e imortal

 

 

 

 

 

 

 

(publicado na revista VISÃO Nº. 996, 5 a 11 de Abril de 2012)

 

 

   Agora sol na rua a fim de me melhorar a dispo­sição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora de saco de compras: não esta­mos assim tão mal, ainda compramos coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro, internacional e nós, estúpidos, culpa­mos logo os governos. Quem nos dá este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo mi­nistros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à caridade. O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles. Tenham o sentido da realidade, portu­gueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teima­mos em não entender. Claro que há po­vos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito. Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver

 

– Senta-te aqui ao meu lado ó Lourei­ro

 

– Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima

 

– Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo

 

que é o mínimo que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E melho­ram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos dos bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsí­dios de cacaracá? Talvez. Mas passare­mos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eterni­dade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Sol­dado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergo­nha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lu­gar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sin­dicatos. Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em cri­se mas as actrizes das telenovelas con­tinuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bi­fes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergo­nha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquan­to vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto. Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.

 

 

 

2 Comments

  1. VIVA. Este espaço tem competência suficiente, para receber o escritor António Lobo Antunes, um verdadeiro Mestre na crónica curta, como as que 0publica na Visão.Se digo isto é para mais uma vez referenciar a excepcional qualidade dos textos aqui publicados. Parabens.Os escritores têm esta obrigação de intervir na vida sócio /política do País. António Lobo Antunes, que conheci numa sessão de autógrafos , no Porto, deveria ficar satisfeito se este texto percorresse o País.Nunca se viu um País onde o próprio governo viola as leis, mas há. Esse PAÍS chama-se Portugal. (Estou a referir-me aos subsídios de Natal de férias) que a Associação de Juízes diz ser ilegal. Eça de Queiroz , cônsul em Neully e que vinha a Lisboa muitas vezes disse da última vez que cá esteve:”eu venho de vez em quando a Portugal para ver este lindo sol que nos cobre”… Tal como diz ALB .JBS

  2. É verdade, caro amigo, não se sabe até quando este povo irá aguentar tanto atropelo praticado por um governo sem a menor sensibilidade social. Começamos a ter medo de acordar para ouvir o que decidiram contra nós durante a noite. Com um Estado destes para que precisamos de Estado? Antes a anarquia. Já não consigo dizer nada de melhor. Obrigada pelas suas palavras. A. Clara

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