Automovelcracia II -, por Eduardo Galeano:

 

Liturgia do divino motor”, são os automóveis que conferem identidade às pessoas

 

 

Com o Deus de quatro rodas acontece aquilo que costuma acontecer com os deuses: nascem a serviço das pessoas, mágicos conjuros contra o medo e a solidão, e acabam pondo as pessoas a seu serviço. A religião do automóvel, que tem seu vaticano nos Estados Unidos da América, tem o mundo de joelhos a seus pés.

 

Seis, seis, seis – A imagem do Paraíso: todo norte-americano possui um carro e uma arma de fogo. Os Estados Unidos detém a maior concentração de automóveis e também o mais numeroso arsenal de armas num único país, os dois negócios básicos da economia nacional. Seis, seis, seis: de cada seis dólares gastos pelo cidadão médio, um é consagrado ao automóvel; de cada seis horas de vida, uma é dedicada a viajar de carro ou a trabalhar para pagá-lo; e de cada seis empregos, um está directa ou indirectamente ligado ao automóvel, e outro está directa ou indirectamente ligado à violência e às suas indústrias.

 

Quanto mais gente os automóveis e as armas assassinarem, e quanto mais natureza eles destruírem, mais crescerá o Produto Interno Bruto. Como bem diz o pesquisador alemão Winfried Wolf, no nosso tempo, as forças produtivas transformaram-se em forças destrutivas. Talismãs contra o desamparo ou convites ao crime? A venda de carros é simétrica à venda de armas, e bem se poderia dizer que faz parte dela: os acidentes de trânsito matam e ferem, a cada ano, mais norte-americanos do que todos os norte-americanos mortos e feridos ao longo da Guerra do Vietnã, e a carteira de motorista é o único documento necessário para qualquer um comprar uma metralhadora, e com ela cozinhar à bala toda a vizinhança.

 

A carta de condução não é apenas usada para estes fins; ela também é imprescindível para pagamentos com cheques ou para sacá-los, para fazer um trâmite burocrático ou para assinar um contrato. Nos Estados Unidos, a carta de condução serve como documento de identidade. Os automóveis conferem identidade às pessoas.

 

Os aliados da democracia – O país conta com a gasolina mais barata do mundo, graças aos presidentes corruptos, aos xeques de óculos escuros e aos reis de opereta que se dedicam a malvender petróleo, a violar direitos humanos e a comprar armas norte-americanas. A Arábia Saudita, por exemplo, que aparece nos primeiros lugares das estatísticas internacionais pela riqueza de seus ricos, pela mortalidade de suas crianças e pelas atrocidades de seus verdugos, é o principal cliente da indústria norte-americana de armas.

 

Sem a gasolina barata fornecida por estes aliados da democracia, o milagre não seria possível: nos Estados Unidos, qualquer um pode ter um carro e muitos podem trocá-lo freqüentemente. E se o dinheiro não for suficiente para o último modelo, já estão à venda aerosóis que dão aroma de nova àquela velharia comprada três ou quatro anos antes, àquele autossauro.

 

Dizes que carro tens e eu te direi quem és e quanto vales. Esta civilização que adora carros tem pânico da velhice: o automóvel, promessa de juventude eterna, é o único corpo que pode ser trocado.

 

A gaiola – A esse outro corpo, o de quatro rodas, é dedicada a maior parte da publicidade na televisão, a maior parte das horas de conversa e a maior parte do espaço das cidades. O automóvel dispõe de restaurantes para se alimentar de gasolina e óleo, e tem a seu serviço farmácias para comprar remédios, hospitais para ser examinado, diagnosticado e curado, dormitórios para dormir e cemitérios para morrer.

 

Ele promete liberdade às pessoas; por alguma razão as estradas são chamadas de freeways, caminhos livres, e no entanto atua como uma gaiola ambulante. O tempo de trabalho humano foi reduzido em pouco ou nada, e porém ano após ano aumenta o tempo necessário para ir e voltar ao trabalho, devido ao trânsito atolador, que nos obriga a avançar penosamente e às cotoveladas.

 

Vive-se dentro do automóvel e ele não nos larga. Drive by shooting sem sair do carro, à toda velocidade, pode-se apertar o gatilho e disparar a esmo, como está em voga nas noites de Los Angeles. Drive thru teller, drive by eating, drive in movies: sem sair do carro pode-se sacar dinheiro do banco, comer hambúrgueres e assistir a um filme. E sem sair do carro pode-se contrair matrimónio, drive in marriage: em Reno, Nevada, um casal passa com o seu automóvel por baixo de arcadas de flores de plástico; numa janelinha aparece a testemunha e na outra o pastor, que os declara marido e mulher, bíblia nas mãos e, na saída, uma funcionária ornamentada de asas e auréola entrega a certidão de casamento e recebe a gorjeta, chamada love donation.

 

O automóvel, corpo renovável, tem mais direitos que o corpo humano, condenado à decrepitude. Os Estados Unidos da América empreenderam, nestes últimos anos, a guerra santa contra o demónio do fumo. Nas revistas, a publicidade dos cigarros aparece atravessada por obrigatórias advertências à saúde pública. Os anúncios advertem, por exemplo: “O fumo do cigarro contém monóxido de carbono”. Mas nenhum anúncio de automóveis adverte que muito mais monóxido de carbono contém os gazes dos automóveis. As pessoas não podem fumar. Os carros, sim.

 

 

 

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