CARTA DE VENEZA – por Sílvio Castro

 

 

 

 

 

Morreu o meu gato Billi

 

 

Hoje, 11 de abril de 2012, em Veneza o tempo não é somente feio, mas horrível: o céu está inteiramente coberto, com as nuvens que impede qualquer passagem de luz, a bendita luz veneziana; chove em modo intermitente, fazendo com que as ruas sejam percorridas por pessoas que não conseguem ver uns aos outros a quatro passos e nada além do próprio guarda-chuva; um vento navalha percorre todos os espaços possíveis e cobre os rostos com o frio da neve das montanhas próximas.

 

Hoje, 11 de abril, tudo ficou mais triste ainda para nossos olhos, os meus e os de Anna Rosa, porque nesta manhã absurda morreu o nosso gato Billi.

 

Billi é – era – um belíssimo gato da chamada raça “italiana”, grande, muito grande, pelo alvo, alvíssimo, com manchas pretas elegantemente cobrindo o seu dorso forte e sua cabeça forte de gato campeão. Os olhos, amarelos e escuros, projetam todas as variantes de um contemplação felina: profundamente impenetrável quando Billi prescruta a natureza das coisas e dos espaços; doces e amigáveis quando ele dialoga com os seus amigos humanos, não somente comigo e com Anna Rosa, mas com um multidão de passantes, venezianos ou forasteiros que passam pela nossa Calle Lunga San Barnaba quando, duas vezes por dia, Billi e eu descemos as nossas escadas de casa para que ele possa fazer os seus passeios sempre desejados. Então Billi comunica não somente com os olhos, mas igualmente através da sua grande capacidade de falar: se um velho passa e lhe diz “Ciao Billi!”, ele logo responde clara e cordialmente “ciao”. Se o turista se lhe chegue para acareçia-lo, depois da obrigatória fotografia, ele se deixa prazeirosamente acareciar. Depois, se a pessoa lhe agrada muito, ele se esfrega nela voluptuosamente.

 

Por isso mesmo, eu que não só mais do que um guardião durante os seus passeios, muitas vezes sinto pelas ruas venezianas saudações de pessoas desconhecidas, mas que logo me perguntam: “e o gato, como vai?”

 

Billi, nós o encontramos que ele era ainda um gatinho que não completara o seu primeiro ano de vida. Era o gato de um grupo de estudantes universitários moradores quase defronte a nós, numa casa de três andares. Billi e seus amigos ocupavam o andar térreo. Ali Billi crescia num pátio enriquecido por um pequeno jardim. Porém, o maior prazer do pequeno Billi era subir no alto muro do jardim, alto três, e dali falar com a gente que passava pela rua. O miagolar constante de Billi não era um simples miagolar, mas um sistema de comunicação muito pessoal, rico de nuances e formas.

 

Mas Billi desde cedo demonstrou sempre uma particular atenção por Anna Rosa. Via quando ela saia de casa e

 quando voltava, e então ele aprendia como funcionava aquela porta da casa de portal gótico. Mas Billi também tinha o seu portal gótico: o seu muro muito alto tinha dois grandes espaços, como janelas do jardim, emolduradas de motivos góticos. Billi se intrometida entre esses espaços para melhor falar com Anna Rosa.  Assim fazendo, Billi aprendeu que a nossa casa tinha uma janela no andar térreo e que essa janela, ainda que gradeada e coberta por uma tela – justamente para evitar entradas e saídas indevidas… – apesar de tudo isso, deixava um dos espaços gradeados aberto. Por ali um dia entrou Billi. Mas ele não sabia que naquela casa vivia igualmente um outro gato, o nosso Mino tanto caro a nós dois, Anna Rosa e eu. Gostaria de contar para vocês todos tudo isso e mais, mas se trata de uma outra história de homens e gatos. Hoje não tenho outros pensamentos senão para Billi. Para a sua doçura, gentileza, amizade, capacidade de amar e de doar-se, mais do que quanto recebia. Não posso falar de outra coisa senão da ausência que a partir desta triste manhã sentimos, Anna Rosa, porque Billi já não virá mais procurar os nossos braços, não mais chegará dentro da noite a dormir entre mim e ela, a acordar-me docemente para que levantasse a coberta e assim ele pudesse cobrir-se mais ainda contra o frio de certas noites. Não sentiremos o seu insistente pedido de querer provar o que comíamos, de ver a televisão junto conosco e de, como nós, também adormecer-se com ela. Já estamos vivendo o grande vazio provocado pela ausência de Billi, sempre presente, mesmo quando fugidio nos seus passos felpados que percorrem todos os cômodos da casa que ela também tanto ama. Já sentimos o peso dessa ausência e o dia se faz cada vez mais triste.

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