De balão (de Em trânsito) – por Raquel Miragaia

Sempre Galiza!

Sempre Galiza!

 

Raquel Miragaia (Vilalva, 1974) estudou Filologia Galego-Portuguesa e Filologia Hispánica na Universidade de Santiago de Compostela. É docente desde o ano 2000. Publicou a sua primeira novela, Diário Comboio, em Dezembro do 2002 em co-edição entre a Agal e Laiovento.

 

Em tránsito, o seu segundo livro, publicado em 2007, com ilustrações de Mauro Trastoy, pela Difusora de letras,artes e ideias, são nove relatos curtos de nove personagens, desorientadas, em trânsito pela vida e pelos espaços que habitam e em que se movem.

 

Sumário: A pé – De comboio – De autocarro – De balom – De aviom – De carro – De metro – De barco – Na estaçom

 

 

 

 

De balom

Há algo de mulher grávida num balom cheio de ar, a pairar por cima de qualquer cousa. Como umha mulher grávida que acaricia a criança por cima da sua pele de barriga esticada, ele balança mole por cima da cidade. E pare pequenas criaturas tam indefesas como o bébé da mulher grávida.

 

O balom é azul, azul-superman, e em grandes letras amarelas leva pintado um VOTE LBN. ALEX GOUVEIA, O NOSSO VEREADOR. Debaixo dessas letras dous rapazes magros e umha rapariga muito jovem tiram as sandes das suas lancheiras. Nom falam, parecem estar enfastiados desse emprego, enfastiados dos panfletos impresssos que ocupam quase mais espaço do que eles, enfastiados das suas sandes de fiambre.

 

A rapariga tem vertigem, pede nom ter que atirar papel nenhum polo bordo da cesta, nesse equilíbrio precário.

 

– Para que aceitache o emprego se nom podes assomar-te?

 

– O que achas?

 

– Como que o que acho? Estou perguntando – o que fala é o rapaz mais jovem. Nom aparenta mais de 17 anos.

 

– Quantas ofertas de emprego tiveche já neste mês?

 

– Esta? – nom parece saber aonde quer chegar a moça com essa conversa maluca.

 

– E o mês passado?

 

– Nenhuma.

 

– E o outro mês?

 

– Umha! Queres a lista completa? Espera que ligo o computador: OFERTAS DE EMPREGO NOS ÚLTIMOS SEIS MESES.

 

O outro rapaz permanece em silêncio. Nom parece do país, nom tem feiçons aborígenes… Se calhar nom compreende a língua.

 

– Se te chateia a resposta nom fagas perguntas estúpidas.

 

– Sua filha da mai! sussurrou, mas o suficiente alto para a rapariga escutar. Ela nom se importou, ou nom deixou que se notasse.

 

Leva um vestido ligeiro de cor verde. Há 30 graus lá acima polo que, acha, foi umha boa escolha. Mas fai-na sentir-se incómoda, vestida para apanhar batatas numha festa de etiqueta. Os dous rapazes vam vestidos de calça curta e camiseta. Todos levam havaianas nos pés. O lanche acaba sem mais conversa até que o estrangeiro fala:

 

– Que horas som?

 

– Duas e meia. Há que começar o trabalho.

 

Com o movimento dos rapazes a cesta balança mais forte, parece quase um barco em mar brava. A rapariga começa a sentir enjoo e a sua cara vira branqui-amarela. Senta com os olhos fechados e os joelhos dobrados sobre si própria.

 

– Oi, nom che pagam para ficares aí quieta.

 

O rapaz fala e trabalha ao mesmo tempo. Ele atira os papéis a presas grandes enquanto o estrangeiro os apanha de dois em dois. Olham-se de vez em quando, sem falar-se. Há estranheza nas olhadas, mas continuam o seu labor sem perguntas.

 

Nenhum deles se conhecia antes de subirem a esse balom. Os três assistiram a um curso acelerado para saber guiar aquele bicho e depois foram escolhidos ao acaso. Como eles, outros muitos pairavam polo céu da cidade atirando papéis doutros candidatos. E algum estaria lançando os panfletos da única candidata, umha mulher com pinta de bem comportadinha que sorria do balom mais generoso, com aspecto de grávido de gémeos.

 

A rapariga consegue pôr-se em pé e começa a atirar os papéis sem olhar para baixo. Tenta manter a olhada horizontal, na linha da frente. Muito longe vê outro balom atirando papéis. Os candidatos repartiram a cidade de comum acordo em quadrados imaginários. A cidade era grande de mais para todos aqueles balons, mas a paisagem aérea ficava toda esquisita, semeada de balons a cores.

 

Abaixo, ao rés do chao, centenas de varredores apanhavam os papéis atirados dos balons e levavam-nos para contentores especialmente colocados para a ocasiom. Os mesmos candidatos que pagavam os atiradores, pagavam também os recolhedores. E nenhum (nenhuma) queria dar imagem de pouco ecológico, gastando papel inutilmente.

 

O ritual tinha qualquer coisa de antropofágica. Os candidatos  – candidata – consumiam-se a si próprios, dumha maneira circular e interrompida de meia em meia hora. (Os atiradores tinham que descansar cada meia hora para dar tempo aos recolhedores a manter outra vez a higiene da cidade).

 

O estrangeiro sentou a descansar e pegou num papel dos que restavam. Começou a ler nele:

 

VOTE LBN

Alex Gouveia, o nosso vereador.

Entre todos faremos a cidade mais limpa. Confie em seu vereador e:

  • Acabaremos com o subemprego.
  • Contrataremos novos efectivos policiais para acabar com a violência.
  • Baixaremos o índice de analfabetismo da nossa populaçom.
  • Melhoraremos o transporte público levando-os mais longe e mais rápido.

(…)

 

E no meio das letras, umha fotografia dum homem duns quarenta anos montada sobre a doutro homem com um resultado estranho, com aspecto de estar anunciando um próximo casamento e nom umhas eleiçons.

 

– Que di esse papel?

 

O estrangeiro fica olhando para o rapaz, mais dum minuto em silêncio.

 

– Porque nom o lês tu?

 

– Sei lá!

 

A rapariga sorri cinicamente e o rapaz fica furioso.

 

– Qual é?

 

– Sei lá que? Por acaso nom sabes ler.

 

O rapaz fica mais e mais iracundo. Ri também, mas esta vez soa a filme de terror, de série B. Começa a mexer os pés olhando fixamente para a rapariga. Sorri. Cada vez fai um movimento mais forte.

 

– Pára com isso! Estás doído?

 

– Sei lá!

 

O rapaz responde quase num grito e o estrangeiro olha para ele. A rapariga sente medo, fica de olhos arregalados sem poder falar. Senta sobre os joelhos e fecha os olhos. O rapaz balança os pés enlouquecido, mesmo fai com o balom pareça perder o equilíbrio. O estrangeiro ergue-se e tenta detê-lo, mas o rapaz tem muita força e peleja. Com a briga o movimento é mais forte e a rapariga acaba por vomitar. Gostava de dizer algo, acredita no valor da palavra e gostava de dizer algo. Algo como «nom merece a pena, deixade estar» ou simplesmente aproximar-se deles num movimento lento e tocar-lhes as maos encolhidas nesse gesto de boxeadores em que ninguém confia.

 

Apenas vomita no chao do balom. No curso acelerado nom havia um capítulo para enfrentar um momento desses. Nada além de para ficar mais altos aumentar o calor, para baixar, reduzir o calor, quando seja a hora pegar no leme e dirigir para a esplanada do subúrbio de onde saíram. Eles e outros vinte balons pilotados por rapazes e raparigas jovens a pensar que esse era apenas o primeiro emprego, depois é que começava a vida real com empregos reais em que pudessem mesmo ter habilidades.

 

No balom do LBN os dous rapazes continuam a brigar. Nenhum deles olha para fora, nenhum enxerga além das paredes fibrosas que os acolhem. Às pancadas no balom ficam completamente isolados, perdendo a conta de qual foi o início da discussom como se isso tivesse algumha importáncia. Nenhum deles vê outro balom que se aproxima. Um balom com letras grandes que dim VOTE NBL. Carlos Garcia, o seu candidato. Nom reparam que nesse balom dous rapazes brigam e uma rapariga está enjoada vomitando no chao. Nom reparam nele.

 

 

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