Esta entrevista, que Irene León fez ao pensador egípcio Samir Amin, é composta por três partes: 1) O mundo visto do Sul; 2) A implosão do capitalismo e 3) Estratégias imperialistas e lutas políticas. Samir Amin é autor de uma volumosa obra de análise crítica do capitalismo e de inovadoras teses, tais como a da “desconexão” e a da “implosão” do capitalismo, às quais ele se refere nesta entrevista traduzida pelo Diário Liberdade, de onde, com a devida vénia, transcrevemos esta entrevista. A tradução, de Gabriela Blanco, revimo-la de acordo com a norma portuguesa.
Irene León: Queríamos focar esta entrevista em três problemáticas distintas, embora relacionadas: a sua visão do mundo e as possibilidades de o transformar; a sua proposta conceptual e política em torno da implosão do capitalismo e da desconexão do mesmo; e a análise do contexto mundial visto especialmente do Médio Oriente e de África. Qual é a sua visão do mundo visto do Sul e a partir de uma perspectiva do Sul?
Samir Amin: Para responder a essa pergunta, que não é nada simples, torna-se necessário dividir o tema em três partes. Interrogar-nos-emos primeiramente sobre quais são as características importantes e decisivas do capitalismo contemporâneo – não do capitalismo em geral, mas do contemporâneo -; o que tem de realmente novo; o que é que o caracteriza. Em segundo lugar, atentaremos na natureza da actual crise que, mais do que como uma crise, eu defino como uma implosão do sistema capitalista contemporâneo. Em terceiro lugar, neste mesmo quadro, analisaremos quais são as estratégias e as forças reaccionárias dominantes, ou seja, do capital dominante, da tríade capitalista Estados Unidos-Europa-Japão e de seus aliados reaccionários no mundo inteiro. Somente tendo compreendido isto, poderemos dimensionar o desafio com que se defrontam os povos do Sul, tanto nos países emergentes como no restantes países.
A minha tese sobre a natureza do sistema capitalista contemporâneo – que, de modo mais modesto, designarei por “hipótese”, porque está aberta à discussão – é que entramos em uma nova fase do capitalismo monopolista, trata-se de uma etapa qualitativamente nova, pautada pelo grau de centralização do capital, cuja condensação chega a tal ponto que, hoje em dia, o capital monopolista o controla totalmente.
Claro que o conceito “capital monopolista” não é novo, foi designado no final do século XIX e, de facto, desenvolveu-se como tal através de distintas fases sucessivas, durante todo o século XX; mas é a partir dos anos 1970-1980 que desponta uma etapa qualitativamente nova, pois antes já existia, mas não o controlava totalmente. Na actualidade, já não existe nenhuma atividade económica capitalista que seja autónoma ou independente do capitalismo monopolista; este controla todas e cada umas das actividades, inclusive aquelas que conservam uma aparência de autonomia. Um exemplo, entre muitos, é o da agricultura nos países capitalistas desenvolvidos, onde é controlada pelos monopólios que fornecem os insumos, as sementes seleccionadas, os pesticidas, os financiamentos e as cadeias de comercialização.
Isso é decisivo, é uma mudança qualitativa do que eu chamo “monopólio generalizado”, ou seja, que se estende a todas as esferas. Esta característica provoca consequências substantivas e importantes. Em primeiro lugar, desvirtuou completamente a democracia burguesa, pois se antes esta se baseava numa oposição esquerda-direita, que correspondia a alianças sociais, mais ou menos populares, mais ou menos burguesas, mas diferenciadas pelas concepções sobre a política económica, na actualidade, nos Estados Unidos, por exemplo, republicanos e democratas, ou em França socialistas da corrente de Hollande e a direita de Sarkozy, são o mesmo, ou quase o mesmo. Ou seja, todos estão alinhados num consenso que é a ordem do capital monopolista.
Essa primeira consequência constitui uma mudança na vida política. A democracia, assim desvirtuada, converteu-se numa farsa, como se vê nas eleições primárias dos Estados Unidos. O capital monopolista generalizado provocou consequências muito graves, transformou os Estados Unidos numa nação de “tontos”, é grave porque a democracia já não se exprime.
A segunda consequência é que o “capitalismo generalizado” é a base objectiva da emergência do que chamo “imperialismo colectivo” da tríade Estados Unidos-Europa-Japão. É um ponto que afirmo com veemência, pois ainda sendo uma hipótese estou na condição de defendê-la: não há maiores contradições entre os Estados Unidos-Europa-Japão, existe uma ligeira competição no plano comercial, mas no plano político, o alinhamento às políticas defendidas pelos Estados Unidos como política mundial é imediato. O que chamamos “comunidade internacional”, copia o discurso dos Estados Unidos e três minutos depois aparecem os embaixadores europeus, com alguns figurantes de grandes democratas, como o Emir do Catar ou o rei da Arábia Saudita. A ONU não existe, essa representação dos Estados é uma caricatura.
É esta a transformação fundamental, a transição do capitalismo monopolista ao “capitalismo monopolista generalizado”, o que explica a financeirização, porque estes monopólios generalizados são capazes, devido ao controle que detém sobre todas as atividades econômicas, de extrair uma parte cada vez maior da mais-valia em todo o mundo e convertê-la na ladeira monopolista, a ladeira imperialista, que constitui a base da desigualdade e do estancamento do crescimento dos países do Norte e da tríade Estados Unidos-Europa-Japão.
Isso nos leva ao segundo ponto: é este sistema que está em crise e, ainda mais, não é somente uma crise: é uma implosão, no sentido que este sistema não é capaz de se reproduzir desde suas próprias bases, ou seja, é vítima de suas próprias contradições internas.
O sistema implode, não porque seja atacado pelo povo, mas por causa de seu êxito, o êxito de ter conseguido impor-se ao povo leva-o a provocar um crescimento vertiginoso das desigualdades, que não somente é escandaloso socialmente, mas também inaceitável, mas acaba sendo aceite, e aceitoe sem objeção; mas não é essa a causa da implosão, mas o fato de que não pode se reproduzir desde suas próprias bases.
Isso leva-me à terceira dimensão, que tem a ver com a estratégia das forças reaccionárias dominantes. Quando falo de forças reaccionárias dominantes me refiro ao capital monopolista generalizado da tríade imperialista histórica Estados Unidos-Europa-Japão, a qual se somam todas as forças reacionárias mundiais que se agrupam, de uma forma ou de outra, em blocos hegemônicos locais, que sustentam e se inscrevem nesta dominação reacionária mundial. Estas forças reaccionárias locais são extremamente numerosas e diferem enormemente de um país a outro.
A estratégia política das forças dominantes, ou seja, do capital monopolista generalizado, financeirizado, da tríade imperialista coletiva histórica tradicional Estados Unidos-Europa-Japão, está definida pela sua identificação ao inimigo. Para eles, o inimigo são os países emergentes, ou seja, a China; o resto, como a Índia, o Brasil e outros, são para eles semi emergentes.
Porquê a China? Porque a classe dirigente tem um projecto, não vou entrar em pormenores sobre a natureza socialista ou capitalista desse projecto, o importante é que conta com um projecto que consiste em não aceitar as ordens do capital monopolista generalizado financeirizado da tríade, que se impõe mediante as suas vantagens: controlo da tecnologia, controlo do acesso aos recursos naturais do planeta, dos meios de comunicação, da propaganda, etc, o controle do sistema monetário e financeiro mundial integrado e das armas de destruição massiça. A China vem questionar esta ordem, sem fazer ruído.
A China não é subcontratada, há setores na China que sim são, em sua qualidade de fabricantes e vendedores de jogos baratos e de má qualidade, somente porque necessitam lançar mão de divisas, isso é fácil, mas não é isso que caracteriza a China, mas o seu desenvolvimento e a rápida absorção de tecnologia de ponta, sua reprodução e desenvolvimento próprio. A China não é a fábrica do mundo, como opinam alguns. Não é “made in China” (feito na China) mas “made by China” (feito pela China), isso agora é possível porque eles fizeram uma revolução: o socialismo construiu paradoxalmente a via que fez possível disputar um certo capitalismo.
Eu diria que depois da China, o resto dos países emergentes são secundários. Se fosse necessário classificá-los, classificaria de emergente a China em 100%, o Brasil em 30% e o resto dos países em 20%. O resto, em comparação com a China, é subcontratado, porque têm negócios de subcontratação importantes, porque têm uma margem de negociação, há um compromisso entre o capital monopolista generalizado financeirizado da tríade e os países emergentes como a Índia e o Brasil e outros. Não acontece o mesmo com a China.
Por isso a guerra contra a China aparece como parte da estratégia da tríade. Há 20 anos já havia americanos loucos que defendiam a ideia de se declarar a guerra, porque depois seria muito tarde.
Os chineses tiveram êxito, é por isso que sua política exterior é tão pacífica, e agora a Rússia entra para formar parte, junto a eles, da categoria de verdadeiros países emergentes. Vemos Putin propondo a modernização do exército russo, tentando refazer o que era a armada soviética, que constituiu um verdadeiro contrapeso à potência militar dos Estados Unidos, isto é importante. Não discuto aqui o fato de que o Putin seja ou não democrata, ou se sua perspectiva é socialista ou não; não se trata disso, mas da possibilidade de contrapor o poder da tríade.
O resto do mundo, o resto do Sul, todos nós, vocês os equatorianos, nós os egípcios, e muitos outros, não conta. Ao capitalismo monopolista coletivo, nossos países apenas são interessantes por uma única razão: o acesso aos novos recursos naturais, porque este capital monopolista não pode se reproduzir sem controlar; destruir os recursos naturais de todo o planeta. É o único que lhe interessa.
Para garantir um acesso exclusivo aos recursos naturais, os imperialistas necessitam que nossos países não se desenvolvam. O “lumpen desenvolvimento” como definiu Andre Gunder Frank, se deu em circunstâncias muito distintas, mas tomo emprestado o termo agora em condições diferentes, para descrever como o único projeto do imperialismo para nós é o não-desenvolvimento. O desenvolvimento do anômalo: pauperização mais petróleo, crescimento falso ou gás, madeira, o que seja, para ter acesso aos recursos naturais e é isso o que está a ponto de implodir, porque é o que se tornou intolerável moralmente, o povo não aceita mais.
É aqui que se geram as implosões, as primeiras ondas de implosão tiveram origem na América Latina, e não é produto do acaso que tenham tido lugar em países marginais, como a Bolívia, o Equador, a Venezuela. Não é produto do acaso. Depois da primavera árabe já teremos outras ondas no Nepal e outros países, porque não é algo que esteja acontecendo somente numa região específica.
Para o povo que é o protagonista disto, o desafio é enorme. Ou seja, o desafio não se dá no quadro deste sistema, na tentativa de transcender desde o neoliberalismo até um capitalismo com rosto humano, entrar na lógica da boa governança, da redução da pobreza, da democratização da vida política, etc., porque todos esses
são modos de gerir a pauperização, que é o resultado desta lógica.
Minha conclusão – desde uma postura focada principalmente em um mundo árabe – é que esta não é apenas uma conjuntura, mas um momento histórico que se apresenta formidável para o povo. Refiro-me à revolução, mas ainda que eu não queira abusar deste termo, estão dadas as condições objetivas para construir amplos blocos sociais alternativos anticapitalistas, há um contexto para a audácia, para propor uma mudança radical.
Magnífico! Aqui está o conselho para activar a esperança. E eu que pensava que o Samir Amin já tinha morrido. Felizmente que não. Estou morta por ler o resto.