CCONSTITUIÇÃO & POLÍTICA – por Paulo Ferreira da Cunha

O argonauta Paulo Ferreira da Cunha lançou hoje, na Livraria Lello, no Porto, a sua obra Constituição & Política, com apresentação do Professor José Gomes Gomes Canotilho. O texto que apresentamos em primeira mão é o do posfácio deste livro.

 

 

 

 

VALOR E OLVIDO DA CONSTITUIÇÃO

A fase actual de ataque à Constituição parece ser a de legislar sem lhe prestar atenção, esperando que ninguém se lembre que existe, e ninguém levante questões de inconstitucionalidade. Ou, se inevitavelmente se levantando elas, tudo fique pacífico na consideração de que a complacência constitucional com tudo é compatível. Há, todavia, institucionalmente, quem tenha como função defender a Constituição. Espera-se que o faça.

 

Valor da Constituição

 

O Direito, como alguém disse, acaba por ser, por um lado, um tradutor universal, tanto mais necessário quanto as nossas sociedades cultivam o autismo em sociolectos e microcosmos cada vez mais fechados, quando não mesmo em guerra ou paz armada (de todos contra todos, diria Hobbes). E, por outro lado, como alguém viu também, o Direito acaba por ser, no cultivo de um mínimo de convivência elementar entre pessoas (que, nas nossas sociedades

mais anómicas que pluralistas, só por acaso partilham valores e costumes comuns) uma medicina da cultura – entendendo-se cultura em sentido lato.

 

Tradutor universal, medicina da cultura, e, por isso, bem de primeira necessidade e tecnologia de ponta, o Direito – que com os Romanos se autonomizou, da religião e da moral sobretudo – aperfeiçoou-se no contacto com altos ideais filosóficos e políticos do Iluminismo e da Revolução Francesa, e mais tarde sob o impacto dos ideais sociais (comuns a várias famílias socialistas e sociais-democratas, à doutrina social da Igreja, etc., etc.). As Constituições liberais, primeiro, e as Constituições sociais, depois, seriam a obra-prima do Direito contemporâneo. A chamada Idade Contemporânea (iniciada em 1789) é precisamente marcada por essas duas proezas da vontade, da sensibilidade e do intelecto: uma a seguir à outra, uma continuando e aprofundando o legado da outra.

 

Se no séc. XVIII triunfaria um movimento constitucionalista liberal de liberdades políticas e luta contra o arbítrio, o séc. XX veria florescerem constituições sociais e cidadãs, em que à ideia de representação e limite ao poder se juntaram de forma inequívoca a preocupação com o bem estar material e cultural dos cidadãos, a sua defesa contra o infortúnio (no desemprego, doença, acidente, velhice…) o equilíbrio ecológico e ambiental, e a participação

popular mais directa no poder.

 

Vivemos hoje (pela letra das nossas constituições) em sociedades políticas que fazem o pleno das aspirações humanas de todos os tempos, mesmo se vistas pelo olhar dos mais ambiciosos utopistas. Estamos num Estado, não em horda ou barbárie, ou mesmo feudalismo. Estado esse que obedece a regras, é Estado de Direito. Cuja legitimidade deriva do Povo e de processos eleitorais de escolha e de destituição dos titulares do poder : logo, vivemos em Estado de direito democrático. O qual se preocupa com o ambiente, a cultura, e, antes de mais, assegura os direitos sociais, económicos e culturais dos cidadãos.

 

Encurtando muito a designação, sempre poderemos dizer que vivemos hoje, constitucionalmente, em Estados de direito, democráticos, sociais e de cultura.

E num tempo em que os direitos humanos são uma espécie de religião universal: nem sempre praticada, é certo, mas unanimemente apregoada.

 

Esta situação de grande constitucionalização ao nível superestrutural e em grande medida doutrinal não é contudo secundada com a vivência política do momento.

 

Olvido da Constituição

Apesar das crises terríveis que demonstraram a falência prática da ideologia dita neoliberal (que tem pouco ou nada a ver com o liberalismo puro; mas não discutamos de nomes), esta pequena família política (em número de seguidores) tem conseguido, legitimando e apoiando-se em poderes vultuosos,

impor a sua lei.

 

A «lei» neoliberal ultrapassa as soberanias, impondo-se por sobre os Estados (a quem se dá notas, aos quais se puxam as orelhas, para os quais se cominam penas não só de apertar o cinto mas simbolicamente vexatórias, etc.). Tudo isto perante a estupefacção primeiro e o clamor depois de milhares e milhões de cidadãos pelo mundo fora, sobretudo na fustigada Europa do Sul, a começar pela Grécia, terra mártir.

 

As medidas impostas aos bodes expiatórios de mais esta crise endémica da sociedade do consumo e da ganância chegam a não acautelar, em geral, o círculo mínimo que os direitos sociais, económicos e culturais devem, juridicamente, irredutivelmente manter. Chegam (como no caso de imposições a grupos-alvo malqueridos pela ideologia dominante, como os funcionários públicos e os pensionistas, assimilados miticamente sempre a burocratas e ociosos, improdutivos) a violar o princípio nem sequer social, mas elementarmente político, da igualdade perante a lei: um direito constitucional de primeira geração, quando já vamos na quinta, pelo menos.

 

Durante um tempo, a Constituição foi álibi para muita coisa se não fazer. Foi sendo revista e expurgada do que poderia ferir sensibilidades mais moderadas.

Mas a insatisfação obviamente continuou por parte do pequeno grupo dos que não querem o Estado Social, o Modelo Social Europeu. De facto, até há pouco, foi a fase das propostas de revisão constitucional inconstitucionais, em que se agitavam bandeiras de alterações que o texto constitucional, por si mesmo, nos seus chamados limites materiais, não comporta (são aquilo a que no Brasil se chama, numa bela imagem, «cláusulas pétreas»).

 

Agora, já se vai compreendendo que alguns pretenderão transformar, pela força das coisas, a Constituição, fortificada por cláusulas pétreas que impedem a sua revisão expressa, num texto flexível e até infra-legal, porque passível de ser ignorado pela legislação ordinária. Basta, para isso, que os agentes constitucionais – os que podem fazer com que o Tribunal Constitucional aprecie da constitucionalidade das normas e os que, nesta Suprema Corte, tal fazem – fechem os olhos e se limitem a prestar um culto ritualístico e sem alma a um «templo alegórico habitado por sombras», como já se chamou à Constituição.

 

Não é sectária a defesa da Constituição. Ela foi aprovada apenas com pouco mais de uma dúzia de votos contra, e, se a sua versão actual tivesse sido a então votada, talvez até tivesse tido ainda mais largo consenso, e sobretudo um consenso mais interiormente sentido. De qualquer forma, ela significa um amplíssimo contrato social nacional.

 

A Constituição pode não vir a ser revista em breve. As pressões para a inclusão de limites à dívida soberana na Constituição podem não ter surtido efeito. Mas, na prática, ela pode ser olimpicamente ignorada em pontos substancialmente bem mais importantes.

 

Esperemos que a Constituição tenha no Estado os seus guardiões primeiros. A outra maneira de defender a Constituição é o Povo falar. Mas quando o Povo fala sem ser pelos seus representantes, podem as ruas ecoar clamores sinceros e profundos, mas também podem ser manipuladas por demagogos. Ora quanto a demagogia impera, normalmente acaba-se, a breve trecho, em ditadura.  

 

Os vários guardiões da Constituição não se esquecerão que é com base na própria lei das leis que todo o Estado tem legitimidade (a começar pelos próprios executivo, legislativo e judicial), e que, como dizia Montesquieu, a tirania espreita sempre durante o sono.

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