As revoluções árabes, um ano depois – 2 – por Samir Amin

 

(Transcrito, com a devida vénia, de Diário Liberdade)

 

Serão possíveis reformas na Argélia dirigidas do interior?

 

Argélia e Egito têm sido, no mundo árabe, os dois países líderes no primeiro “despertar do Sul”, na época de Bandung, do Não-Alinhamento e da implantação vitoriosa da afirmação nacional pós-colonial, associada a autênticas realizações econômicas e sociais importantes e progressistas, que auguravam maravilhosas possibilidades no futuro. Mas depois os dois países chegaram a um impasse, para, finalmente, aceitarem o “retorno ao redil” dos estados e das sociedades dominadas pelo imperialismo.

 

O modelo da Argélia deu sinais claros de uma consistência mais forte, o que explica que tenha resistido melhor à sua degradação interna. Por essa razão, a classe dirigente argelina é heterogênea e está dividida entre os que mantêm aspirações nacionais e os que se juntaram à “compradorização” (às vezes, esses dois componentes conflituantes estão combinados nas mesmas pessoas). No Egito, pelo contrário, a classe dominante converteu-se integralmente, com Sadat e Mubarak, em burguesia compradora, sem qualquer aspiração nacional.

 

Duas razões principais explicam esta diferença. A guerra de libertação na Argélia produziu, naturalmente, uma radicalização social e ideológica. Em vez disso no Egito o nasserismo surge no final do período de expansão do movimento iniciado pela revolução de 1919, que se radicaliza em 1946. O golpe de estado – ambíguo – de 1952 é uma resposta para o beco sem saída em que encontrava o movimento. Além disso, a sociedade argelina sofreu, com a colonização, enormes assaltos destruidores. A nova sociedade argelina, decorrente da reconquista da independência, não tinha nada em comum com os tempos pré-coloniais. Tornou-se uma sociedade plebéia, marcada por uma muito forte aspiração à igualdade.

 

Esta aspiração não se encontra com a mesma força em qualquer outro lugar no mundo árabe, nem no Magrebe ou Machereque. Ao invés, o Egito moderno constituiu-se desde o início (de Mohamed Ali) pela sua aristocracia progressivamente transformada em “burguesia aristocrata” (ou “aristocracia capitalista”). Essas diferenças colocam outra, de óbvia importância, sobre o futuro do Islão político. Como indicou Hocine Bela lloufi (Democracia na Argélia: reforma ou revolução?, em vias de publicação) o Islão político argelino (a FIS), que mostrou a sua face horrível, foi derrotado. Isto não significa que o problema esteja finalmente resolvido. Mas a diferença é grande em relação à situação no Egito, caracterizada por uma sólida convergência entre o poder da burguesia compradora e o islamismo político da Irmandade Muçulmana.

 

De todas essas diferenças entre os dois países derivam diferentes possibilidades de resposta aos desafios atuais. A Argélia parece-me em melhor posição (ou menos má posição) para responder a estes desafios, pelo menos no curto prazo. Penso que na Argélia ainda existe a possibilidade de reformas econômicas, políticas e sociais controladas a partir do interior. Em contraste, no Egito, o confronto entre o “movimento” e o bloco reacionário “contra-revolucionário” parece tender inexoravelmente a agravar-se.

 

Argélia e Egito são dois exemplos paradigmáticos da impotência, até agora, das sociedades envolvidas em enfrentar o desafio. Argélia e Egito são dois países do mundo árabe candidatos possíveis à “emergência”. É evidente a responsabilidade primária das classes dirigentes e dos sistemas de poder atuais no fracasso de conseguir a dita “emergência”. Mas a responsabilidade das sociedades, dos intelectuais, dos militantes dos movimentos em luta também deve ser levada a sério.

 

Podemos esperar um desenvolvimento pacífico e democrático em Marrocos? Duvido, na medida em que o povo marroquino adere ao dogma arcaico que não dissocia a monarquia (de direito divino: “o amir-mouminine“) da Nação. Esta é sem dúvida a razão pela qual os marroquinos não entendem a questão sarauí: os nômades orgulhosos do Saara têm outra concepção do Islão, que os proíbe de se ajoelharem ante outro que não seja Alá, mesmo que seja o Rei.

 

O drama da Síria

 

O regime de Bashar al-Assad não é nem mais nem menos do que um estado policial que acompanha a submissão às exigências do “liberalismo” globalizado. A legitimidade da revolta do povo sírio é indiscutível. Mas a destruição da Síria é o objetivo dos três parceiros, que são os Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita, que mobilizam para isso a Irmandade Muçulmana e lhe fornecem armas. A sua eventual vitória – com ou sem a intervenção externa – resultará no desmembramento do país, massacre dos alauitas, drusos e cristãos. Mas não importa. O objetivo de Washington e seus aliados não é libertar a Síria do seu ditador, mas destruir o país, como não era para libertar o Iraque de Saddam Hussein, mas para o destruir.

 

A única solução democrática seria realizar reformas substanciais em benefício das forças populares e democráticas existentes, e que se recusam a se inscrever na Irmandade Muçulmana. Se o regime é incapaz de o compreender, nada impedirá que o drama continue até o fim. É irônico ver que agora o sultão do Qatar e o rei da Arábia Saudita são os campeões da promoção da democracia (noutros países). É difícil que a farsa vá ainda mais longe!

 

(Continua)

1 Comment

  1. Será certo, não o duvido. Mas podemos afirmar que na UE, nestas partes da UE e emparticular no reino bourbónico de que sou súbdito, existe muita mais liberdade?Se os cidadãos (no caso do reino bourbónico, súbditos) são “roubados” pelos estados sob pretexto da crise e outras endrôminas, esses cidadãos serão cada vez menos livres. (No reino bourbónico estamos a padecê-lo a fume de caroço: o pEpE em quatro meses tem demolido o “estado do bem estar”, que já era precário. Não sei se em Portugal, república, não acontece isso mesmo: então?)

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