A ‘farsa democrática’ e o desafio de inventar a democracia futura – 1 – Samir Amin

 

Damos hoje início à publicação deste extenso artigo de Samir Amin sobre um tema que a todos interessa – a busca de um novo paradigma, a invenção da democracia para o futuro. Este trabalho foi transcrito de “America Latina en movimiento”, site da Agencia Latinoamericana de Información, com revisão do texto para a norma portuguesa.

 

O voto universal é conquista recente, das lutas dos trabalhadores no século 19 em alguns países europeus (Inglaterra, França, Países Baixos e Bélgica), que aos poucos se tornou estensiva a todo o mundo. Hoje, é desnecessário dizer, a reivindicação do poder supremo, delegado a uma Assembleia eleita, correctamente, em base pluripartidária – seja assembleia legislativa ou constituinte, segundo as circunstâncias – define a aspiração democrática e (supostamente, digo eu) garante a realização da democracia.

O próprio Marx investiu grandes esperanças nesse voto universal, “via pacífica possível rumo ao socialismo”. Já escrevi que, quanto a esse ponto, a história tem desmentido as esperanças de Marx (cf. Marx et la démocratie).

Creio que não é difícil identificar a razão do fracasso da democracia eleitoral: todas as sociedades, até hoje, são baseadas num duplo sistema de exploração do trabalho (sob diferentes formas) e de concentração do poder do Estado em benefício da classe dirigente. Essa realidade fundamental produziu uma relativa “despolitização/desculturação” de vastos segmentos da sociedade. E essa produção, concebida e posta em prática, em grande parte, para cumprir a função de sistema que se esperava que cumprisse, é, simultaneamente, a condição para que o sistema seja reproduzido, sem outras mudanças “se não as que se podem controlar e absorver, e são condição de estabilidade do próprio sistema.” O que se define como “o país profundo” significa, de facto, o país mais profundamente adormecido. Eleições e voto universal, nessas condições, é vitória garantida de todos os conservadorismos (ainda que reformistas).

Por isso nunca se viu mudança na história produzida por esse modo de governo baseado no “consenso” (conservador, consenso para nada mudar). Todas as mudanças de cunho realmente transformador da sociedade, mesmo as reformas (radicais) sempre foram produto de lutas, levadas avante por grupos que, em termos eleitorais, muitas vezes se manifestaram como “minorias”. Sem a iniciativa dessas minorias que são o elemento motor da sociedade, não há mudança possível. As lutas em questão, assim empreendidas, acabam sempre – quando as alternativas propostas sejam clara e correctamente definidas – por arrastar as “maiorias” (silenciosas, no início), até serem consagradas pelo voto universal, que vem sempre depois – nunca antes – da vitória.

No nosso mundo contemporâneo, o “consenso” (a partir do qual o voto universal definiu as fronteiras) é mais conservador do que jamais antes. Nos centros do sistema mundial, esse consenso é pro-imperialista. Não no sentido de que implique necessariamente ódio ou desprezo a outros povos que são vítimas desse “consenso”, mas no sentido, mais banal, de que se aceita a punção da renda imperialista, porque ela é a condição de reprodução de toda a sociedade, garantia de sua “opulência”, sempre em contraste com a miséria dos outros. Nas periferias, as respostas dos povos ao desafio (à pauperização produzida pelo deslocamento da acumulação capitalista/imperialista) ainda são confusas, no sentido de que sempre veiculam uma dose de ilusões passadistas fatais.

Nessas condições, os poderes dominantes recorrem a “eleições” como o meio por excelência de refrear o movimento, de extinguir o potencial de radicalização das lutas. “Eleições: armadilha para tolos” (Élections, piège à cons) – diziam alguns em 1968, com bastante razão, confirmada por muitos factos. Hoje, eleitas em altíssima velocidade, já há assembleias constituintes na Tunísia e no Egipto: para estabilizar o país, “pôr fim à desordem”, quer dizer: tudo mudar, para nada mudar.

Assim sendo… Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que dêem às eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para elas.

 

Aí está o desafio que temos de enfrentar.

A seguir – O décor teatral da farsa democrática

Leave a Reply