Teorias e práticas das vanguardas e dos despotismos iluminados – A tempestade é portadora potencial de avanços revolucionários, mas não é sinónimo imediato de revolução.
As respostas dos povos das periferias, inspiradas pelo ideal do socialismo radical – pelo menos na origem (Rússia, China, Vietname, Cuba) – ou da libertação nacional e do progresso social (à época da Conferência de Bandung na Ásia e na África[1], na América Latina), não são simples. Elas associam, em diferentes graus, componentes de vocação progressista universalista e outros, de natureza passadista. Destrinçar as interferências conflituantes e/ou complementares entre essas tendência ajudará a formular – adiante, nesse artigo – as formas possíveis de autênticos avanços democráticos.
Os marxismos históricos da 3ª Internacional (o marxismo-leninismo russo e o maoísmo chinês) rejeitaram deliberadamente e integralmente o passadismo. Optaram por uma visada voltada para o futuro, em espírito de emancipação no pleno sentido da palavra. Essa opção foi sem dúvida facilitada na Rússia, pela longa preparação que permitiu aos “ocidentalistas” (burgueses) vencer os “eslavófilos” e os “eurasianos” (aliados do Antigo Regime), na China, pela revolução dos Taipings (escrevi sobre isso em La Commune de Paris et la Révolution des Taipings).X Simultaneamente, esses marxismos históricos optaram, de saída, por uma conceptualização do papel das “vanguardas” na transformação das sociedades. Deram forma institucionalizada a essa opção, simbolizada pelo “partido”. Não se pode dizer que a opção tenha sido ineficaz. Bem ao contrário disso, ela com certeza esteve na base das vitórias daquelas revoluções. A hipótese de que a vanguarda minoritária ganharia o apoio da imensa maioria mostrou que tinha fundamento. Mas a história posterior se encarregaria de mostrar os limites dessa eficácia. Porque o fato de o essencial dos poderes se ter concentrado nas mãos dessas “vanguardas” não é absolutamente estranho às derivas posteriores dos sistemas “socialistas” que se pretendia criar e instituir.X A teoria da prática dos marxismos históricos em questão teriam sido práticas de “despotismos iluminados”? Não se pode saber, se não se fixar precisamente quais foram e o que progressivamente vieram a ser os objetivos desses despotismos iluminados. Em todo caso, foram, até o fim, “antipassadistas” – como o comprova o comportamento deles em relação à religião, declarada puro obscurantismo (já escrevi sobre essa questão em L’internationale de l’obscurantisme).X O conceito de “vanguarda” foi menos adotado nas sociedades revolucionárias consideradas que em outras sociedades. Estava na base do que vieram a ser os partidos comunistas de todo o mundo, dos anos 1920 aos anos 1980, e encontrou lugar nos regimes nacionais populares do Terceiro Mundo contemporâneo. Por toda a parte, esse conceito de “vanguarda” dava à teoria e à ideologia importância decisiva, a qual, por sua vez, implicava valorizar o papel dos “intelectuais” (revolucionários, é claro), ou seja, da intelligentsia.X Intelligentsia não é sinônimo de classes médias educadas, menos ainda de quadros, burocratas, tecnocratas ou universitários (as chamadas “elites”, no jargão anglo-saxão). Intelligentsia é um grupo social que não emerge como tal senão em condições especiais que se observam em algumas sociedades e passam a ser ativo importante, muitas vezes decisivo. Fora da Rússia e da China, encontra-se fenômeno análogo na França, na Itália e em outros países, mas com certeza não há nem na Grã-Bretanha nem nos EUA, nem, em geral, na Europa do Norte.X Na França, durante a maior parte do século 20, a intelligentsia teve lugar importante na história do país, reconhecido pelos melhores historiadores. Pode ter sido efeito indireto da Comuna de Paris, durante a qual o ideal da construção de um estágio mais avançado da civilização, ao sair do capitalismo, manifestou-se mais claramente que em qualquer outro ponto do mundo (cf. meu artigo sobre a Comuna).X Na Itália, o Partido comunista de antes do fascismo cumpriu funções análogas. Como Luciana Castallina observa com lucidez, os comunistas – uma vanguarda fortemente apoiada pela classe operária, mas sempre minoritária em termos eleitorais – realmente construíram, sozinhos, a democracia italiana. Tiveram, “na oposição” – à época – um poder real na sociedade, muito mais considerável do que teriam depois, “no governo”! O verdadeiro suicídio, que só se explica pela mediocridade dos líderes que sucederam Berlinguer, fez sumir, com eles mesmos, o Estado e a democracia na península.X Esse fenômeno da intelligentsia jamais existiu nos EUA e na Europa protestante do Norte. O que aqui se chama “a elite” – a seleção do termo é significativa – é composta exclusivamente de servidores do sistema, ainda que sejam “reformadores”. A filosofia empirista/pragmatista, que aqui ocupa toda a cena do pensamento social, com certeza reforçou os efeitos conservadores da reforma protestante cuja crítica propus noutro estudo (L’Eurocentrisme, modernité, religion, démocratie). O anarquista alemão Rudolf Rocker é dos raros pensadores europeus que expôs reflexão próxima da minha; mas a moda exige – por Weber e contra Marx – que a reforma protestante seja celebrada sem exame, como avanço progressista!X Nas sociedades periféricas em geral, além dos casos flagrantes de Rússia e China, e por idênticas razões, iniciativas das “vanguardas”, quase sempre intelligentsistas, favoreceram a reunião e o apoio de grandes maiorias populares. A forma mais frequente dessas cristalizações políticas cujas intervenções foram decisivas no “despertar do Sul” foi a do (ou dos) “populismo”. Teoria e prática traçadas pelas “elites” (à moda anglo-saxônica, “pró-sistema”), mas defendidas e em certo sentido reabilitadas por Ernesto Laclau com argumentos sólidos, boa parte dos quais assumirei.X É claro que há tantos “populismos” quanto experiências históricas chamadas “populistas”. Os populismos são frequentemente associados a personagens “carismáticos”, cuja “autoridade” do pensamento é aceita sem muita discussão. Os reais avanços (sociais ou nacionais) que lhes são associados em algumas condições levaram-me a classificar esses regimes como “nacionais populares”. Fique desde já claro que esses avanços jamais foram mantidos nem por uma prática democrática convencional, “burguesa”, menos ainda por um conjunto de práticas mais avançadas, como as que apresentarei, pelo menos nas linhas gerais possíveis, adiante, nesse artigo. Foi o caso da Turquia de Ataturk, que provavelmente iniciou o modelo para o Oriente Médio, depois do Egito nasserista, os regimes do partido Baas da primeira fase, da Argélia da FLN. Experiências análogas, em condições diferentes, foram desenvolvidas nos anos 1940 e 1950 na América Latina. A “fórmula”, porque responde a carências e possibilidades reais, está longe de ter perdido seu potencial de renovação. X Classificarei portanto de boa vontade como “nacionais populares” algumas experiências em curso na América Latina, sem deixar de assinalar que, no plano da democratização, essas experiências sem dúvida trouxeram avanços que não se viram nas que as precederam.X Propus algumas análises sobre as razões do sucesso dos avanços obtidos nesse quadro em alguns países do Oriente Médio (Afeganistão, Iêmen do Sul, Sudão, Iraque) que pareciam mais promissores que outros, mas também as razões dos fracassos dramáticos.X Seja como for, é preciso não generalizar nem simplificar, como faze a maioria dos comentaristas ocidentais obcecados pela “questão democrática”, ela mesma já reduzida à fórmula do que descrevi como “farsa democrática”. Nos países da periferia, essa farsa assume muitas vezes traços de extrema caricatura. Sem serem “democratas”, alguns líderes de regimes nacionais populares foram “grandes reformadores” (progressistas), carismáticos ou não. Nasser é um belo exemplo. Mas outros nada foram além de polichinelos inconsistentes, como Gaddafi, ou déspotas vulgares “não iluminados” (e, além disso, sem qualquer carisma), como Ben Ali, Moubarak e vários outros. De fato, esses ditadores não conduziram experiências nacionais populares. Nada fizeram além de organizar a pilhagem de seus países por máfias associadas pessoalmente ao próprio ditador. Nesse sentido, foram, como Suharto e Marcos, agentes executivos das potências imperialistas as quais, além do mais, sustentaram seus poderes até o final.