EDUARDO GALEANO: «A internet abriu espaços».

Esta entrevista foi feita há sete anos pelo jornalista Marcelo Salles. Marcelo Salles é o criador do jornal “Fazendo Média” e coordenador da revista “Caros Amigos”, do Rio de Janeiro. Salles é ele próprio uma figura cujas opiniões nos irão em edição futura merecer a devida atenção. É uma excelente entrevista – poderá estar desactualizada num ou noutro aspecto, mas, no essencial, as opiniões de Eduardo Galeano mantêm-se actuais e pertinentes. Procedemos a pequenas adaptações do texto ao português europeu.

 

Marcelo Salles – No seu livro “De pernas para o ar” dedica um capítulo inteiro aos meios de comunicação de massa. Queria ouvir a sua avaliação dos meios de comunicação de massa dentro do sistema de poder vigente e como contribuem para transmitir essa cultura de impotência.

 

Eduardo Galeano – Sim, a transmitir uma cultura da impotência que tem em uma de suas bases dessa cultura de perpetuação, dessa ideia de que você tem direito a existir enquanto aceitar que sua existência será uma obediência. Se pretende existir com um projecto, a situação fica mais difícil. Então, os meios de comunicação ao serviço dessa visão conformista da história, do mundo, da vida, estão agora mais concentrados do que nunca. Os espaços da imprensa independente, da expressão independente, têm se reduzido muito. Com uma excepção, que eu acho muito importante, que é a internet. A internet realmente abriu espaços de enorme difusão a vozes que agora encontram incríveis possibilidades de difusão. E isso é uma boa notícia que a realidade deu contra todos os prognósticos, pois a internet nasceu como uma operação militar do Pentágono para planificar as suas operações. Ou seja, foi uma coisa nascida da morte, do extermínio do outro, pois a guerra é isso. E depois tornou-se num espaço que contém um pouco de tudo, que não é uma coisa só, mas que inclui muitas expressões, da afirmação da boa energia da vida, da energia multiplicadora do melhor da vida, a liberdade, a vontade de justiça.

 

Acabou de falar da internet, inicialmente usada pelo Pentágono e depois subvertida. Recentemente em Paris as periferias se levantaram e usaram a gasolina para acender os cocktails molotov, ou seja, usando o próprio combustível do sistema. Queria saber se acredita que o sistema tem esse carácter autofágico e se isso poderia ser mais explorado.

 

Não sei. Acho que as contradições do sistema capitalista são reais e não produto de uma mente assim doente, febril, de nenhum terrorista conspirador, inimigo da humanidade. Essas contradições têm como consequência uma marginalização social crescente. E essa marginalização vai continuar a produzir acontecimentos, que às vezes são controláveis, outras nem tanto, e que podem gerar alternativa. Vamos ver o que acontece, pois ninguém sabe. Esses movimentos, como esses do banlieu, de Paris, que segundo um amigo meu, não sei se é verdade, ban vem de banir, que significa castigar, proibir, expulsar, jogar fora. E lieu significa lugar. Lugar de expulsão, lugar de castigo. A ideia é muito interessante, porque é exactamente isso o que está a acontecer. Mas por enquanto são explosões de puro desespero e não tem nenhuma perspectiva de futuro. Tanto é de desespero que muitos dos carros queimados são carros dos próprios queimadores. É o filho queimando o carro dos pai que é um operário pobre, que conseguiu comprar um carro pobre, que está sendo queimado pelos seus. É uma agressão contra um sistema segregacionista, humilhante, mas também tem muito de auto-destrutivo, suicida, como acontece nos movimentos que são de puro desespero. A esperança que a gente tem é que isso possa, depois, desembocar noutras coisas, como muitas vezes acontece na América Latina, que começa com uma raiva que explode cegamente e depois encontra caminhos para a converter em algo bastante melhor. Quer dizer, abrindo perspectivas. Se não fica só como uma testemunha de que essa é uma situação insuportável e que até agora o sistema vinha dissimulando a insuportabilidade da situação. E essa reacção tão expressiva, tão curiosa, foi uma reacção contra o desprezo quotidiano, multiplicada hoje porque as pessoas que têm alguma coisa a ver com o mundo árabe são os novos demónios, terroristas. E o mundo do bem necessita ter demónios para se justificar. Esse mundo gasta hoje 2 mil e 300 milhões de dólares por dia com a guerra! US$ 2.3 mil milhões por dia na fabricação da morte, na indústria da morte! É até difícil imaginar como é possível. Bom, para que isso seja possível, que é um escândalo, é precis ter demónios, é a luta contra o mal. Enquanto isso, há tantas criancinhas morrendo de fome, morrendo de doenças curáveis. É um escândalo! Este mundo é escandalosamente injusto! Daí a necessidade de demónios.

 

Por exemplo?

 

Hugo Chávez é um demónio. Porquê? Porque alfabetizou dois milhões de venezuelanos, que não sabiam ler e escrever, mas vivem num país que tem a riqueza natural mais importante do mundo que é o petróleo. Eu morei nesse país alguns anos e conheci muito bem o que era. Chamam-lhe “A Venezuela Saudita” por causa do petróleo. Tinham dois milhões de crianças que não podiam ir às escolas porque não tinham documentos. Então chega um governo, esse governo diabólico, demoníaco, que faz coisas elementares, como dizer “As crianças devem ser aceites nas escolas com ou sem documentos”. Cai o mundo – isso é a prova de que Chávez é um malvado -malvadíssimo. Já que tem essa riqueza, e graças à guerra do Iraque o petróleo tem cotações muito altas, ele quer aproveitar isso com fins solidários. Quer ajudar os outros países sul-americanos, principalmente Cuba. Cuba manda médicos, ele paga com petróleo. Mas esses médicos também foram outra fonte de escândalos. Dizem que os médicos venezuelanos estavam furiosos pela presença desses intrusos trabalhando nesses bairros pobres. Na época em que eu morava lá como correspondente da Prensa Latina, nunca vi um médico. Agora sim há médicos. A presença dos médicos cubanos é outra evidência de que Chávez está na Terra de visita, porque ele pertence ao inferno. Então, quando se lê as notícias, tem que traduzir tudo. A demonização tem essa origem, para justificar a diabólica máquina da morte.

 

(Conclui amanhã)

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