Eduardo Galeano – Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada
No século XVI, alguns teólogos da igreja católica legitimavam a conquista da América em nome do direito da comunicação. Jus communicationis: os conquistadores falavam, os índios escutavam. A guerra era inevitável justamente quando os índios se faziam de surdos. O seu direito de comunicação consistia no direito de obedecer.
No fim do século XX, aquela violação da América ainda se chama encontro de culturas, enquanto se continua a chamar comunicação ao monólogo do poder.
Em redor da Terra gira um anel de satélites cheios de milhões e milhões de palavras e imagens, que da terra vêm e à terra voltam. Prodigiosas engenhocas do tamanho de uma unha recebem, processam e emitem, à velocidade da luz, mensagens que há meio século exigiriam trinta toneladas de maquinaria. Milagres da tecnociência nestes tecnotempos: os mais afortunados membros da sociedade mediática podem gozar as férias atendendo o telemóvel, recebendo e-mails, respondendo ao bipe, lendo faxes, transferindo as chamadas do receptor automático, fazendo compras por computador e preenchendo o ócio com os videogames e televisão portátil.
Voo e vertigem da tecnologia da comunicação, que parece bruxaria: à meia-noite, um computador beija a testa de Bill Gates, que de manhã desperta transformado no homem mais rico do mundo. Já está no mercado o primeiro microfone incorporado no computador, para que se converse com ele. No ciberespaço, Cidade celestial, celebra-se o matrimónio do computador com o telefone e a televisão, convidando-se a humanidade para o baptismo dos seus filhos assombrosos.
A cibercomunidade nascente encontra refúgio na realidade virtual, enquanto as cidades se transformam em imensos desertos cheios de gente, onde cada qual olha por si e está metido em sua própria bolha. Há quarenta anos, segundo as pesquisas, seis de cada dez norte-americanos confiavam na maioria das pessoas. Hoje a confiança murchou: só quatro de cada dez confiam nos demais. Este modelo de desenvolvimento desenvolve a desvinculação. Quanto mais se sataniza a relação com as pessoas, que te podem te pegar a Sida, ttirar-te o emprego ou depenar-te a casa, mais se sacraliza a relação com as máquinas. A indústria da comunicação, a mais dinâmica da economia mundial, vende as abracadabras que dão acesso à Nova Era da história da humanidade. Mas este mundo comunicadíssimo está a parecer demasiado um reino de sozinhos e de mudos.
Os meios dominantes de comunicação estão em poucas mãos, que são cada vez menos mãos e em regra actuam a serviço de um sistema que reduz as relações humanas ao mútuo uso e ao mútuo medo. Nos últimos tempos, a galáxia Internet abriu imprevistas e valiosas oportunidades de expressão alternativa. Pela Internet estão irradiando as suas mensagens numerosas vozes que não são ecos do poder. Mas o acesso a essa nova auto-estrada da informação é ainda um privilégio dos países desenvolvidos, onde residem noventa e cinco por cento dos utilizadores. E já a publicidade comercial está tentando transformar a Internet em Businessnet: esse novo espaço para a liberdade de comunicação é também um novo espaço para a liberdade de comércio. No planeta virtual não se corre o risco de encontrar alfândegas, nem governos com delírios de independência. Em meados de 1997, quando o espaço comercial da rede já ultrapassava com sobras o espaço educativo, o presidente dos EUA recomendou que todos os países do mundo mantivessem livres de impostos a venda de bens e serviços através da Internet, e desde então este é um dos assuntos que mais preocupam os representantes norte-americanos nos organismos internacionais.
O controlo do ciberespaço depende das linhas telefónicas e nada é mais casual quer a onda de privatizações dos últimos anos, no mundo inteiro, tenha arrancado os telefones das mãos públicas para os entregar aos grandes conglomerados da comunicação. Os investimentos norte-americanos em telefonia estrangeira se multiplicam muito mais do que os demais investimentos, enquanto avança a galope a concentração de capitais: até meados de 1998, oito mega-empresas dominavam o negócio telefónico nos EUA, e numa só semana se reduziram a cinco.
A televisão aberta e por cabo, a indústria cinematográfica, a imprensa de tiragem massiça, as grandes editoras de livros e de discos e as emissoras de rádio de maior alcance também avançam, com botas de sete léguas, para o monopólio. Os mass media de difusão universal puseram nas nuvens o preço da liberdade de expressão: cada vez são mais numerosos os opinados, os que têm o direito de ouvir, e cada vez são menos numerosos os opinadores, os que têm o direito de se fazer ouvir. Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, ainda tinham ampla ressonância os meios independentes de informação e opinião e as aventuras criadoras que revelavam e alimentavam a diversidade cultural. Em 1980, a absorção de muitas empresas médias e pequenas já deixara maior parte do mercado planetário na posse de cinqüenta empresas. Desde então a independência e a diversidade tornaram-se mais raras do que um cão verde.
Segundo o produtor Jerry Isenberg, o extermínio da criação independente na televisão norte-americana foi fulminante nos últimos vinte anos: as empresas independentes proporcionavam entre trinta e cinquenta por cento do que se via no ecrã e agora chegam a apenas dez por cento.
Também são reveladores os números da publicidade no mundo: actualmente, metade de todo o dinheiro que o planeta gasta em publicidade vai parar ao bolso de apenas dez conglomerados, que açambarcaram produção e a distribuição de tudo o que se relaciona com imagem, palavra e música.
Nos últimos cinco anos, duplicaram o seu mercado internacional as principais empresas norteamericanas de comunicação: General Electric, Disney/ABC, Time Warner/CNN, Viacom, Tele-Communications INC. (TCI) e a recém chegada Microsoft, a empresa de Bil Gates, que reina no mercado equivalente e televisual. Estes gigantes exercem um poder oligopólico, que em escala planetária é compartilhado pelo império Murdoch, pela empresa japonesa Sony, pela alemã Berteslmann e mais uma ou outra. Juntas, teceram uma teia universal. Seus interesses se entrecruzam, atadas que estão por numerosos fios. Ainda que esses mastodontes da comunicação simulem competir e às vezes até se enfrentam e se insultem para satisfazer a plateia, na hora da verdade o espectáculo cessa e, tranquilamente, eles repartem o planeta.
Por obra e graça da boa sorte cibernética, Bill Gates amealhou uma rápida fortuna equivalente a todo o orçamento anual do estado argentino. Em meados de 1998, o governo dos EUA entrou com uma acção contra a Microsoft, acusada de impor seus produtos através de métodos monopolistas que esmagavam seus competidos. Tempos antes, o governo federal entrara com um processo similar contra a IBM: ao cabo de treze anos de marchas e contramarchas, o assunto deu em nada. Pouco podem as leis jurídicas contra as leis económicas: a economia capitalista gera concentração de poder tal como o<iinverno gera o frio. Não é provável que as leis anti-trust, que outrora ameaçavam os reis do petróleo, possam pôr em perigo a trama planetária que está a possibilitar o mais perigoso dos despotismos: o que actua sobre o coração e a consciência da humanidade inteira.
A diversidade tecnológica quer significar diversidade democrática. A tecnologia põe a imagem, a palavra e a música ao alcance de todos, como nunca antes ocorrera na história humana, mas essa maravilha pode transformar-se num logro para incautos se o monopólio privado acabar por impor a ditadura da imagem única, da palavra única e da música única. Ressalvadas as excepções, que felizmente existem e não são poucas, essa pluralidade tende, em regra, a oferecer-nos milhares de possibilidades de escolher entre o mesmo e o mesmo. Como diz o jornalista argentino Ezequiel Fernández-Moore, a propósito da informação: “Estamos informados de tudo, mas não sabemos de nada”.
(In “De pernas pro ar” )