PROCESSO EDUCATIVO: Ensino ou aprendizagem – 3 – por Raul Iturra

4. Entre gerações

 

O processo educativo é o comportamento que mais marca o quotidiano das nossas vidas, e é o mais quotidiano dos processos que orienta o nosso agir. Seja como ensino, seja como aprendizagem, procura sistematizar o conjunto do dia-a-dia de todos os seres humanos de diversas idades que coexistem. Se bem que na sociedade primitiva há variabilidades que se refletem na diversidade com que os mitos são transmitidos, o ritual com que se aprende a comunicar símbolos fixos é que permite o entendimento e a experimentação do que o ritual ensina: é o processo pedagógico do saber que se explica. Mas, nas sociedades primitivas, como na europeia rural ou proletária, ou ainda numa pequena burguesia mais monetarizada que iluminada, o registo da variabilidade é, devido à técnica oral predominante, lenta.

 

Nas sociedades eruditas, ou nas sociedades com eruditos, onde o método indutivo-dedutivo felizmente produz saberes provados que podem sempre experimentar-se outra vez, e onde há consciência que devem experimentar-se outra vez, estão sempre a surgir novas ideias que entram em contradição com outras, anteriores ou contemporâneas, donde a variabilidade é rápida, quase vertiginosa. Os ciclos individuais de vida ficam, assim, como os ciclos locais, atados, encadeados à estrutura do tempo definido pela descoberta científica. O processo educativo, cuja união com o tempo estrutural é feita pela teoria económica que nos governa – não com a qual nos governamos, mas que nos obriga a governarmo-nos com tudo –, está afeitado por uma decalagem permanente no tempo. A nova geração que aprende dos seus pais, parentes e vizinhos, está a aprender diversas experiências históricas, diversas racionalidades, no ato único de educar-se. No caso da maior parte dos países europeus, a reforma liberal da sociedade dinamizou mudanças que a geração que ontem ensinava, aprendeu a entender de seus próprios pais, parentes e vizinhos, uma prática de adesão ao seu saber; enquanto a geração que hoje ensina, precisa aprender na concorrência e na rutura.

 

No caso português, a experiência liberal tentou ser encapsulada durante cinquenta anos, dentro da invariância histórica de uma unidade fabricada na base de um catolicismo que tentou congelar a experiência e governar com modelos fixos de classes sociais. Por muitas décadas, uma forte estrutura hierárquica fechou a mobilidade social, texto básico em todo o grupo que permite aprender comportamentos diversos, e prendeu as gerações a um ensino subordinante a uma verdade modelar única. A força das ideias acabou com esse modelo social para entrar rapidamente, sem transição quase, à concorrência e ao eclodir de classes sociais. No entanto, ficou a teoria dentro das mentes dos seres humanos que foram ensinados na unidade e na força do hierárquico que não divide o saber social, mas que impõe o dogma. Este facto histórico tem marcado o processo educativo a todo o nível, definindo-o como sendo de ensino porque se considera a criança suspeita de incapacidade de raciocinar pela aplicação do Direito Canónico no governo da nação, assim como a teoria estruturada no processo quotidiano de vida, incapaz de produzir conhecimento.

 

 A figura do professor, semelhante à do padre, passa a ser, a continuar a ser, a da autoridade da qual tudo se recebe e à qual há que obedecer. Emerge assim a figura de um mediador entre o saber dos eruditos do grupo social e o das crianças irracionais e dos adultos incapazes de se governar e entender o movimento da história que quotidianamente produzem, o professor. O professor sabe para onde é que a vida vai, e, com clarividência, incute este saber na instituição escola, isto porque assim nisso acredita e porque assim mesmo ele foi ensinado, separando esse saber da cultura à qual pertence e a cujos membros tem que ensinar. Enfim, a minha ironia, ao colocar esta questão, deriva do contacto com tanto professor convicto da verdade absoluta do seu saber, de tal forma que ficam de fora do campo social. O professor, essa profissão que tem sido ensinada a substituir gerações e conjunturas, e que, como todo o adulto que precisa de certezas para viver, encontra a sua no seu papel estratégico de ponte entre a ignorância do povo das matérias geradas pela investigação de outros e a sua própria ignorância de como o conhecimento é produzido. Aliás, de todo o professor, qual é a pessoa que vem ensinar? Do ciclo da vida que o leva ao Magistério, qual o saber aprendido desde o qual ensina? Se o professor trava o processo de aprendizagem entre gerações, pela sua figura charneira entre eruditos e aprendizes, e se, não sendo investigador, não aprende ele próprio o processo do quotidiano com que a existência é teorizada e vivida, deve ter um papel no processo educativo que ele gere.

 

5. A infância do professor

 

É verdade que o professor é um inocente filho da conjuntura histórica que o formou. É verdade também que a imagem do professor, derivada da figura monacal ou goliarda, é resultado da sua possibilidade de explicar, de trabalhar com as categorias da razão. O processo de vida quotidiana que forma as crianças é vorazmente emotivo: por exemplo a chantagem derivada do mito cristão da morte de um homem que assume na sua vida o erro de todos os demais, excepto o seu, e que é a base teórica da nossa cultura ocidental; ou a hipótese de teoria cultural ocidental. O processo educativo de pais, parentes e vizinhos, é baseado na dosificarão do amor e da agressividade familiar, um facto que só podemos aceitar, pelo menos contextualizar para viver em paz. O professor trabalha com outras categorias, não fabricadas por ele, mas que lhe foram incutidas como teoria de afastamento para desenvolver mentes de lógica da prova.

 

Não é que o professor não ame, deve é racionalizar a afetividade com que ensina. E, assim, não chega ao processo de liberar os aprendizes da sujeição à sua palavra e conhecimento: primeiro, porque deve transmitir a teoria oficial de saber não relacionada com a experiência da classe social e de técnicas passíveis de entender pelos mais novos; segundo, porque todo o indivíduo que ele forma deve ser cidadão, isto é, moeda do mesmo valor. Mas, é verdade também, e isso é evidente no agir do professor, que ele é filho, principalmente, da sua infância. O professor também aprendeu a ser com os pais, parentes e vizinhos, e, a partir desse quotidiano, aprendeu então, como seus alunos hoje, as categorias racionais do conhecimento. Assim como na sociedade totémica de cada grupo entende a parte da natureza com a qual se identifica analogicamente, também na sociedade de classes a experiência de trabalho do grupo doméstico, e seus associados, explicam ao seu «rebento» a sua perceção da vida. Essa perceção da vida é difícil de mudar, como se pode apreciar em dois factos: nas metáforas com que os professores ensinam o programa preparado pelos eruditos; e na dificuldade evidente nos factos e nas estatísticas de insucesso escolar, de transmitir o conhecimento erudito à próxima geração. O professor poderia mudar o seu quotidiano refletido no seu ensino, se ele próprio fosse um investigador que reproduz o que tenta entender na sua pesquisa. Mas, na sociedade de massas em que trabalha, o seu objeto de trabalho é definido como o de um artífice da escrita, leitura e cálculo, para o qual o conteúdo é um pretexto para desenvolver estilos literários como ditado, composição, ensaio, teste. A opção de quem movimenta o processo educativo é a de ensinar, porque não lhe é dada a oportunidade de experimentar, de pesquisar sobre o processo de dinamizar a aprendizagem. Assim, a infância do professor acaba por ser a teoria que marca essa única opção com a qual fica, um quotidiano que se impõe por saber as teorias que lhe são entregues. A análise de infância do professor, de toda a conjuntura em que nasceu, é a pista que nos faz falta para entender porque é que o processo educativo é mais marcadamente ensino e não aprendizagem. Isto é, foge dos símbolos culturais que, explicitados na consciência do aluno, permitiriam a compreensão por parte dos aprendizes do racionalismo científico manipulado pelos eruditos. Se o professor não investiga da mesma maneira que os eruditos, as alternativas do processo educativo ficam fechadas e o processo educativo sujeito aos seus símbolos aprendidos no quotidiano que marca a perceção dos factos durante a sua carreira burocrática. O processo educativo, ensino e aprendizagem, tem a forte componente de ensino com os conteúdos eruditos decorados, percebidos pela experiência do ciclo de vida do indivíduo que é professor e que elabora uma pedagogia a partir da sua experiência do dia-a-dia das aulas, do afastamento cultural com a população que ensina e, paradoxalmente, da sua interpretação de pais e crianças trazida do seu próprio quotidiano pré-profissional.

 

6. Outras culturas

 

Permita-me o leitor dar um pequeno rodeio por outras terras, essas que os antropólogos estudam fora do continente europeu, para comparar e relativizar o território português. Entre os povos que nós chamamos primitivos, e que são nossos contemporâneos, o conhecimento de como se relacionar com os outros, e o lugar que cada um ocupa na estrutura social, está determinado antes de um indivíduo nascer. O primeiro conhecimento que se incute a cada nova geração é o das hierarquias sociais, que começa logo pelas históricas, quer dizer, desta terra até às dos ancestrais que desde algum lugar fora da matéria observam e intervêm nos destinos dos vivos. Todo o indivíduo Tallensi, no Ghana, como Meyer Fortes estudou (1949), sabe que o seu destino não depende da sua vontade, mas da arbitrariedade da divindade que passou a ser seu antepassado. Assim como todo Tallensi sabe que em caso de guerra (Fortes, 1940), não pode matar nem ferir pessoas do deu próprio sangue que, por lei da exogamia que governa a troca matrimonial, se encontrem entre o clã com que se batalha.

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