As eleições presidenciais em França e legislativas na Grécia confirmaram mais uma vez, através da legitimidade do voto, o que teima em não ser reconhecido por quem verdadeiramente tem os comandos da Europa: existe um antagonismo absoluto entre a vontade popular e as políticas determinadas pelas instituições europeias. Em linguagem nua e crua, as práticas políticas e económicas assumidas pelas autoridades da União Europeia como sendo não apenas inevitáveis como únicas, não estão em sintonia com a democracia. Não se trata de um simples défice; é mesmo uma adulteração do sistema democrático.
Gregos e franceses deram dois valentes murros na austeridade. Os primeiros, depois de terem despedido Papandreu decidiram ajustar contas com o seu sucessor socialista Venizelos e com o primeiro ministro não eleito Papademos, imposto por Bruxelas, além de mostrarem o cartão vermelho ao chefe da direita tradicional, António Samaras, que pratica a austeridade ao mesmo tempo que procura simular que tem as mãos limpas dessa barbárie social; os franceses mandaram embora Nicolas Sarkozy recusando-lhe um segundo mandato, coisa que há mais de 50 anos não faziam.
Desde que a senhora Merkel e todos os colaboracionistas europeus sujeitos ao diktat neoliberal alemão decidiram impor a política de austeridade aos povos europeus a pretexto de crises sucessivas iniciadas com a do subprime nos Estados Unidos até à das dívidas soberanas, os dirigentes europeus no poder têm sofrido uma razia absoluta sempre que se submetem a eleições. Portugal, Espanha, Reino Unido, Irlanda, Holanda, Dinamarca, Finlândia afastaram os primeiros ministros e trocaram de governos; agora os gregos reduziram a bastante menos de metade a força política dos dois partidos que se submeteram à ditadura da troika e os franceses despediram o presidente escolhendo um político que promete combater o tratado de institucionalização da austeridade. Em Itália, o desastre berlusconiano foi atalhado por uma manobra anti-democrática ao estilo grego que poderá proporcionar resultados do mesmo tipo quando houver eleições. Na Alemanha, as sucessivas eleições regionais vão testemunhando o desgaste da senhora Merkel enquanto a luta social avança através do país.
Até agora as alterações governamentais no espaço da União Europeia não determinaram mudanças de política: os novos dirigentes seguiram ou agravaram mesmo os comportamentos dos anteriores, obedecendo à solução única de Bruxelas. A poucas horas da votação de franceses e gregos, o presidente da Comissão Europeia afirmou, provavelmente pela milionésima vez, que o caminho imposto até aqui é o correcto, não tem alternativa e os povos terão que submeter-se à “estabilização financeira” para que, finalmente, os mercados se sintam confiantes. Para o senhor Durão Barroso, a vontade dos mercados continua a valer mais do que o desejo dos eleitores expresso democraticamente em eleições sucessivas. No Estado actual da União Europeia a democracia é uma ficção perante a ditadura real dos mercados.
Os resultados na Grécia e em França revelam, porém, as primeiras alterações qualitativas com incidência nos espectros políticos. A Finlândia já manifestara alguns indícios, a Holanda pode em Setembro proporcionar surpresas, mas franceses e gregos declararam-no sem tibiezas: chega de austeridade.
Na Grécia, a soma das percentagens dos partidos anti-austeridade supera as dos partidos colaboracionistas que se submetem à ditadura da troika devastando a economia do país, provocando uma catástrofe social que continua a agravar-se. Há décadas que o PASOK e a Nova Democracia governavam a Grécia como uma espécie de partido único, sem contestação visível; agora, os dois partidos austeritaristas desceram de 75 por cento dos votos para cerca de 35 por cento. Logo que foi devolvida a palavra aos gregos, depois de tantas manobras para os silenciar, os resultados ficaram à vista. Ruíram todas as mentiras de Papandreu, Venizelos, Samaras, Papademos e outros colaboradores do sistema Lehman Brothers garantindo a existem de confortável maioria favorável à austeridade.
Em França, que vai ter eleições parlamentares muito em breve, o afastamento do presidente em exercício – peça fundamental da afirmação do poder neoliberal alemão sobre a Europa – enquadra-se num processo de contestação da austeridade económica, da perda de soberania e do novo tratado que submete os orçamentos dos Estados a Bruxelas. O presidente eleito, François Hollande, embora represente o Partido Socialista congregou apoios e fez promessas que o comprometem a não alinhar com as práticas neoliberais de outros partidos socialistas e sociais democratas europeus, desde logo por contestar o próprio tratado de imposição da austeridade. Com eleições gerais à porta, Hollande vai ser recordado dos seus compromissos de cada vez que se sinta tentado a afastar-se, sob o risco de não conseguir evitar um terramoto eleitoral como o que aconteceu na Grécia.
Os dois murros na austeridade atingem Bruxelas em cheio e provaram que o sistema de falsa democracia imposto em nome dos mercados não está imune aos movimentos de resistência e contestação promovidos de modo cada vez mais eficaz e convergente pelos cidadãos. A Europa começou a mudar.
Desta nem o truque habilidoso ( bónus de 50 deputados para o partido mais votado, independentemente do número de votos) – até hoje garantia do duopólio – chegou para garantir uma maioria a um dos, ou mesmo aos dois, habituais alternantes (distinto de alternativos) .Olha se o bloco central português se lembra de querer transpor para Portugal um mecanismo similar, a bem da estabilidade claro?