(Continuação)
9. A emoção
Se o processo educativo começa na vinculação dos seres humanos mais novos aos que os antecedem, é um processo que fica dependente da afetividade entre as crianças e os adultos que tomam conta delas. Nas sociedades primitivas, cultiva-se a afetividade entre progenitores e filhos, e entre iniciador e iniciados. O conteúdo é a explicação dos laços sociais que unem as pessoas entre si, a devoção a quem explica, o respeito ao totem e à divisão taxonómica e hierárquica entre pessoas, envolvendo direitos e obrigações mútuas. Uma grande maioria de povos africanos explica o EL-AL Corão, que define principalmente onde deve estar colocado o coração de uma pessoa. Nos povos ocidentais, também desde há centenas de anos, como acontece no caso muçulmano, o código em que a infância é treinada é o do amar, respeitar, entender-se a si próprio.
É deste ensino que os grupos domésticos retiram as suas maneiras de se relacionar; e ainda que entre eles existam rixas e agressividades, a relação afetiva acaba por ser a mais importante, a procura de harmonia e comunicação o alvo principal do que diz se faz. Isto não porque a lei mosaica, ou kiriwina ou Tallensi, o mandem, mas porque entre estes povos, como entre judeus, ciganos, muçulmanos, cristãos e católicos, todos eles, seres humanos enfim, a capacidade de amar existe como a pedra mármore que o pensamento e a experiência histórica vêm talhando, esculpindo, dando forma e direção, hierarquia e orientação. À criança que aprende e desenvolve a capacidade humana de construir amor e entendimento, falta-lhe experiência de deslealdade e traição; ignora o valor de transação como moeda de troca: confiando em quem toma conta dela, deixando correr o fluxo da confiança e prevendo um mundo de festa. É-lhe ainda entregue ritualmente, quando está na idade estimulada de entendimento, o conhecimento, palavra a palavra, das formas de amor e estima que os seres humanos podem praticar entre si. Finalmente, a emoção é coroada pela prática específica de produzir a vida por meio do trabalho organizado na base do respeito e obediência a quem detém a autoridade: o trabalho rural, nativo, e de outras minorias mesmo ocidentais, como pescadores, operariado industrial, e a colaboração doméstica que existe em todos os grupos e classes, caracteriza-se para as crianças pela adesão. Há grupos onde parece reinar a raiva e a disputa perpétua, mas, como tenho observado, os filhos ficam mais coesos entre eles; os pais têm que ser vencidos permanentemente, mesmo quando têm que lutar para ganhar pelo grito e pela porrada aquilo que não está garantido por uma outra maneira de afetividade (a meiguice das classes burguesas como estratégia de solução). A idade da pré-iniciação é o período de treino de todas as emoções que mais tarde vão configurar o adulto. Esta etapa do processo educativo desenvolve-se ao longo da vida e repete-se nos próprios filhos que as crianças virão a ter. Exprimem-se de forma diferente nas culturas distantes e nas que estão em contacto umas com as outras.
10. A razão
Não falo da capacidade de raciocinar. Falo da faculdade que foi salientada como a mais importante entre os seres humanos, quando o ocidente generalizou a circulação da moeda de um investimento, a usura e a avareza, a criação de empréstimo, os juros e a banca (Iturra, 1991); isto é, quando o ocidente começou a passar ao cálculo de rendimentos para avaliar atividades e capacidades. Para tanto, foi necessário travar-se a solidariedade estatalmente a partir a partir do séc. XVIII na Europa e dinamizar também a igualdade entre as pessoas como equivalentes monetários umas às outras. Esta é a vontade externa que, no processo educativo, vem contrariar os desenvolvimentos emotivos e orientar capacidades para conseguir trabalho. Junto as ideias de amor, desenvolveu-se as de concorrência. O processo educativo institucional orienta o conteúdo do seu ensino para a aprendizagem do trabalho produtivo como bem supremo, e à criação de valor e renda como meios de obter moeda. O motto ocidental do ensino é de que cada pessoa é um indivíduo responsável, que pode optar entre alternativas que entende e para as quais tem recursos que maximiza (Stuart Mill, 1789).
Cada uma destas palavras é um conceito indicativo da atividade dentro da instituição escolar, em clara consonância com a teoria que preside a vida social e com a economia liberal organizada a partir do séc. XVIII (Adam Smith, 1776). É verdade que a tradição grego-judaica, da qual nasce o cristianismo, fala permanentemente de livre arbítrio. No entanto, os conceitos não são equivalentes. O livre arbítrio é o discernimento que define os limites do Eu e o respeito do outro, enquanto o indivíduo define a capacidade de um membro do grupo social capaz de viver sem precisar de mais ninguém, e até em concorrência com os outros (Freud, 1989; Jung, 1954). A responsabilidade de que se fala é soma das tarefas que uma pessoa aceita nas suas mãos, mesmo à rebeldia dos outros e em contradição com eles. Optar define a capacidade de entender todos os processos sociais, mesmo o da criação da riqueza, e, mesmo, de criá-la.
A alternativa é a capacidade de agir em várias direções diferentes, mudando o rumo quando a riqueza, isto é, a felicidade, não é encontrada. Recursos são os bens que se têm de guardar para investir e maximizar-se, são os rendimentos acrescidos através de só uma ação. Todas estas ideias têm como fundo que cada um sabe dos preços de toda atividade e que pode pagá-los. Um modelo feito a imagem e semelhança do proprietário dos bens, que precisa de pessoal preparado e formado no cálculo abstrato para que lhe emite a vida e crie assim um valor (Marx, 1863; David Ricardo, 1873). Este é o modelo que se explica no processo educativo institucional.
Finalmente tenho chegado ao que está a ser ensinado na instituição escolar e praticado na vida social. É evidente que a instituição não pode deixar de ensinar o que se espera que a sociedade seja. O que é duvidoso é que a sociedade ocidental esteja constituída por esse tipo de seres sem identidades nem lealdades, bem como é duvidoso de que um modelo assim pensado tenha sucesso. Porque será que no final da glorificação do individualismo as antigas Nações-Estado passem as ser outra vez regiões federadas? Seria esta glorificação do individualismo, forma de se defender de um processo educativo unificante de concorrência que existe mesmo entre seres da mesma genealogia? (Ver Stoer e Araújo, 1993).
(Continua)