Com esta pequena nota de Paulo Ferreira da Cunha, introduzimos um filme onde a jornalista canadiana Naomi Klein nos expõe a “Doutrina do Choque”, defendida por Milton Friedman. É uma tese tão humana quanto o eram as experiências que os médicos nazis faziam nos campos de extermínio, partindo do princípio de que, seres reduzidos à expressão mais simples da sua humanidade, prestes a morrer, podiam ser úteis proporcionando avanços científicos. A terapia de choque que nos está a ser aplicada, parte do pressuposto de que é legítimo fazer tábua rasa de todos os direitos das gerações actuais para, se tudo correr bem, o modelo económico anquilosado por que nos regemos regenere o seu tecido e, sem mudança de paradigma, ressurja daqui por uns anos pujante, revitalisado. A “Doutrina do Choque”, permite-nos compreender o que este executivo pretende.
Obviamente que este título não indica nada de novo. Como sempre ocorre com certas pessoas e certos grupos, a sociedade e certos setores perversos ou iludidos das sociedades têm necessidade de apontar o dedo a bodes expiatórios. E, se puderem, eliminá-los em rituais catárticos.
É impressionante (para apenas dar um exemplo) ver a resposta ao discurso de receção na Academia francesa que Miguel Serres faz a René Girard (Le Tragique et la Pitié, Paris, Le Pommier, 2007). Somos realmente uma espécie assassina, que sempre visa lavar as suas culpas com a imolação de vítimas inventadas. Por alguma coisa, aliás, existe o episódio do sacrifício (evitado) de Isaac por Abraão, na Bíblia (creio que é Paul Ricoeur que alude à superação – ? – do sacrifício humano aí simbolizada…).
E Maquiavel foi um desses bodes expiatórios. Não que fosse um santo, mas não era o que o pintaram e continuam a pintar (explicamos mais detidamente na no nosso Repensar a Política, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007). Tudo parece que o Príncipe terá sido escrito com “mixed feelings”: por um lado, era preciso uma figura política capaz de, mesmo à força, unificar a Itália, fundar o “Estado” italiano; por outro lado, era uma oportunidade de Maquiavel mostrar ao povo as perfídias dos governantes, sobretudo de um governante absoluto.
Nada disto é novo. O que contudo nos ocorre hoje é outra coisa, que valerá a pena ponderar…
Ao recordar a Doutrina do Choque, num vídeo completo de Naomi Klein, e ao comparar com o que todos os dias acontece, com os poderes a dizer, a matizar, a contradizer e a desdizer(em-se), mas em que cada dia (com muito rigor, se contarmos bem) a comunicação social nos dá mais novidades más (mais cortes, mais desgraças, mais descidas de rendimentos, de direitos, etc., etc.), conclui-se que Maquiavel era pouco menos que um santo. Pois esse alegadamente pérfido filósofo político não escreveu que o mal deve ser feito todo de uma vez e o bem aos poucos? Ao invés, a situação atual ou é antimaquiavelismo, ou é imprevisão, deriva.