MUNDO CÃO – A Teia – por José Goulão

Que caminhos segue a democracia representativa, parlamentar, a única segundo os padrões estabelecidos para que se cumpra “o poder do povo”, pelo menos segundo os poderes que se auto-elegeram como vigilantes da aplicação da própria democracia?

A pergunta não é retórica, o tema não é académico, é muito terra-a-terra, é o pão para a boca dos nossos dias. Tem que ser tratado sem rodeios, nem divagações, eufemismos e metáforas.

Vejamos o caso da Grécia. Fala-se muito da Grécia, mas se repararem não é de maneira repetitiva. A situação actual na Grécia é uma Universidade política, um laboratório da vontade popular onde nada precisa de ser simulado em computador porque nele pode lidar-se com a realidade crua. Pode até ser interessante a circunstância de esta realidade estar a ser vivida no país que deu ao mundo as primeiras práticas democráticas e a origem etimológica da palavra democracia, mas indo por aí estaríamos longe do fundo da questão.

O que se passa na Grécia é antes uma inversão da situação dominante, para ser mais explícito um teste aos que se auto-elegeram como vigilantes da democracia. Ou têm argumentos convincentes ou desmascaram-se como autocratas disfarçados de democratas, capazes até de chegar à violência do cerco pela fome ou à “democrática” acção militar. Confessando então que o poder em que vivemos, a coberto da moderníssima palavra globalização, é uma grande mentira, o que dá ao cidadão comum o legítimo direito de contestar activamente a ordem dominante para restaurar a democracia.

O que se passa então na Grécia? Usando os instrumentos da democracia, as eleições livres e justas – que ninguém contestou – os cidadãos retiraram o direito de governar aos partidos que, seguindo as orientações externas emanadas de Bruxelas, Washington e Berlim/Frankfurt, impuseram uma linha política única, não passível de contestação, que transformou a democracia numa espécie de ditadura da dívida soberana. Isto é, vale tudo contra os cidadãos para pagar uma dívida que não contraíram e para tal aplicam-se métodos que têm empobrecido o país, instauraram uma barbárie social e… aumentaram a dívida; de 114 por cento do PIB para 163 por cento em dois anos. Em termos comuns, aplicaram o regime da austeridade.

Os gregos disseram não ao regime da austeridade retirando muito mais de metade dos votos aos partidos que aplicam esta política e também a maioria para governarem. Os partidos anti-austeridade não foram dotados, é certo, da possibilidade de formarem maioria, mas aí o caso fia ainda mais fino: a lei eleitoral não é efectivamente democrática, não é proporcional à vontade expressa dos cidadãos porque dá de mão beijada 50 deputados ao partido mais votado (se for uma coligação isso já não acontece, outra discriminação), o que vicia imediatamente as regras do jogo. Esses 50 deputados impedem objctivamente, neste caso que a vontade expressa do povo se transforme em maioria parlamentar, logo maioria para governar.

Esta é a situação local. Mais importante ainda, por ser mais significativo, é o comportamento das instâncias europeias e internacionais – União Europeia, FMI, membros de governos europeus – insistindo em que não há alternativa à austeridade. Do senhor Barroso ao senhor Schauble, braço direito da senhora Merkel, e outros ministros de outros governos que não são tidos nem achados nos votos dos cidadãos gregos, todos mandam ordens para Atenas dizendo que ou o novo governo faz o mesmo que o anterior, como se não tivesse havido eleições, ou os gregos serão tratados como párias na Europa e no mundo, reconhecendo assim todos a dividocracia como a democracia moderna. Neste quadro, os gregos e os partidos contra a austeridade não são mais do que lunáticos sem credibilidade, uns irresponsáveis. No entanto, o que fizeram foi, tão só, aplicar a democracia, manifestar a “vontade do povo”.

Ora a “vontade do povo”, já o percebemos, não é para aplicar, o preço a pagar será o isolamento internacional num tempo global em que tudo é interdependente. Bruxelas disse  a Atenas em nome da democracia, da sua democracia: ou o que nós queremos ou caos.

Democracia? Esta é que é a democracia, ditarão. A teia está montada. Foi e continua a ser segregada pela letal aranha que se chama mercado. A democracia que vigora, a única, a legítima, a que manda digam o que disserem as eleições, custe o que custar, é a do poder do dinheiro.
 

 

3 Comments

  1. Baseado na experiência inglesa, Jean-Jacques Rousseau, em 1762, no seu “Do Contrato Social” ,torcia o nariz à democracia representativa, pois após se apanharem eleitos os deputados se desvinculam de imediato dos eleitores e das promessas que lhe fizeram e passam, na melhor da hipóteses, a estar ao serviço da direcção do partido a que pertencem. Portanto, com democracia representativa o poder do povo resume-se ao voto. E o que acontece em Portugal é que se constituiu um bloco central que se alterna no poder. Com o passar dos anos – e aqui já passaram quase quarenta – criou-se uma oligarquia neo-liberal poderosa – às famílias tradicionais que vindas do liberalismo monárquico, atravessaram a Primeira República, se recompuseram ao longo do Estado Novo, sobreviveram a Abril, juntou-se uma estirpe de políticos profissionais, com a qual teceram uma forte rede de ligações endogâmicas e de interesses comuns. Para muitos de nós a Democracia é um fim. Para essa gente, a Democracia é um meio. E tal como no Estado Novo se dizia que a «pátria não se discute», ouvimos agora estes senhores afirmarem que «a democracia não se discute». Penso que temos mesmo é de discutir a Democracia. Saber do que falamos quando falamos de democracia.

  2. É ver por que cartilhas andam os nossos dirigentes a aprender. Passos Coelho os últimos ensinamentos que colheu, segundo o próprio, vêm num livro “muito interessante e muito estimulante do presidente de Singapura…embora Singapura seja um regime autocrático…”. Está tudo dito, não é?

  3. Carlos Leça da Veiga pede que coloquemos este seu comentário:Na verdade é muito acertado, nada académico nem, tão-pouco, retórico perguntar-se sobre como vão os caminhos da Democracia representativa e parlamentar.Quanto a mim, à pertinência da questão – refiro, apenas, o caso português – só pode e deve responder-se como, por exacto, anos atrás foi feito pelo Professor Vitorino Magalhães Godinho. Com efeito, a este ilustre Professor, como a mais nenhuma outra personalidade ou instituição – enfatize-se este aspecto – fica a dever-se a afirmação bem necessária, oportuna quanto baste e, também, dita num tom de total frontalidade que “a realidade portuguesa está a viver sem Democracia”.Não será por haver uma encenação razoavelmente montada que vai poder dizer-se que há uma Democracia e, também, não parece necessário invocar-se a situação lamentável que tem sido imposta ao Povo grego para, dalgum modo, exemplificar-se uma antevisão dos riscos duma desagregação da Democracia.Por infelicidade nacional tem havido muitos beneficiários do regime representativo e parlamentar que, sejam eles personalidades ou agrupamentos políticos, uns e outros, têm achado por bem serem intermediários constitucionalmente abusivos da vontade política da população e – recorde-se o discurso de Burke em 177 – permitirem alcandorar-se ao estatuto de representantes do Estado.A situação de exploração económica que sujeita milhões de portugueses a uma existência com dificuldades tremendas, de sacrifícios até à pouco insuspeitados e, sobretudo, com um futuro nacional pleno de incertezas tem sido, e é, para a generalidade – partidos políticos incluídos – a explicação mais apurada para a crise em curso cujos desenvolvimentos deletérios são premonitórios duma qualquer aventura autoritária, como por exemplo, dulcificada sob as vestes, já em gestação, do modelo democrático – diga-se autoritário – tipo Singapura.Em meu entender – sem que ponha em causa a evidência criminosa da exploração económica, financeira, cultural e social da imensa maioria dos portugueses – os riscos indesejáveis para os caminhos da Democracia residem, no mais fundamental, no seu modelo constitucional, velho de séculos que, como nunca, afasta deliberadamente os Cidadãos dos seus direitos legítimos a uma intervenção política muito mais directa através dum organização constitucional capaz de satisfazer a realidade social dos dias de hoje e não, como tem acontecido, a responder monotonamente e sem utilidade palpável tal como foi engendrado, na Europa continental, nos finais do século XVIII. Com convém aos possidentes, tudo pode acontecer à margem dos interesses e da vontade política da população a quem cabe – a generosidade é grande- a tarefa de votar a espaços dilatados.Se essa vontade da população tivesse tido a possibilidade de pronunciar-se dum modo muito mais efectivo teria sido possível o endividamento actual?Não tivesse tudo sido feito ao arrepio do conhecimento popular e teria havido tantas facilidade para a banca ditar os seus interesses financeiros?Teria sido possível que um qualquer governo fosse autorizado a comprometer a Independência nacional e a sua vontade Soberana?Para mim só outra Constituição, outra Democracia e uma Terceira República.

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