A DIVINDADE EM CIÊNCIAS MÉDICAS – por Raúl Iturra

Não falo dos (as) machi Mapuche (Picunche) da Cordilheira dos Andes, nem dos xamanes dos Tonga dos Andaman da Melanésia, nem tão pouco dos Baloma da Kiriwina. Das suas aventuras e poderes nos têm falado Luís Silva Pereira (2000), eu próprio (em vários textos entre 1997-2011), Malinowski (1923), Radccliffe-Brownn (1922) e Émile Durkheim (1912).

 

Não, hoje falarei das nossas aventuras e desventuras com os nossos xamanes, chamados entre nós médicos.
Entre os machi e os xamanes, entre outros, há o segredo, a boa disposição, as formas amáveis de tratar os doentes, as mulheres que dão à luz e os seus maridos que acompanham a couvade, como expliquei noutros textos:  http://www.google.pt/#hl=pt-PT&&sa=X&ei=vM9sTaTvLY-XOpHMzIAD&sqi=2&ved=0CBYQBSgA&q=Ra%C3%BAl+Iturra+A+couvade&spell=1&fp=f5e138f980abc305.

 

Proibido está aos mágicos, revelar os seus segredos. O que sabem é, como diz Durkheim em 1912, apenas para eles. Se os cuidados forem revelados, perdem a ignorância do encantamento, como esse acompanhar a mulher por parte do homem que engendra nela uma criança, os xamãs são capazes de transferir as dores da mulher para o pai, o que materialmente acontece, como tenho observado e analisado na vida real. É bem possível que os xamãs do ocidente (denominados médicos) pensem que é apenas uma forma hipnótica de engravidar um homem, ou de curar febres altas, tifos e outras doenças por nós conhecidas. O segredo está nas formas curativas, todas rituais e com respeito. Entre os Barasana da Amazónia colombiana, estudados recentemente pelos Antropólogos Christine e Steven Hugh Jones, o limo é a melhor das formas para curar doenças de pele, dos rins e de prisão de ventre, como se denomina no ocidente à obstipação. Estes conhecimentos levaram Christine a estudar ao longo de vários anos a biologia e a fisiologia Barasana, até completar os seus estudos em Cambridge e em Oxford, medicina tropical. Actualmente, é uma afamada médica em Camebridshire, ou distrito de Cambridge. Bronislaw Malinowski passou a ser um excelente analista, como os seus discípulos, entre os que me considero parte activa por meio da Etnopsicologia que pratico: viver com as pessoas, entender a forma de falar, compreender as formas familiares e transferir esse saber para o Ocidente. Começamos pela vida social e acabamos, naturalmente, no afã de entender as relações sociais, por usar a psicanálise para saber a causa das coisas. Como fez o meu antigo colega do Collège de France, Georges Devereux, que entendeu, após anos de vivência em comum, a psicanálise dos Mohave, criando a Etnospiquiatria, que se ajustou perfeitamente à teoria ocidental, melhorando, especialmente, o entendimento das rixas entre pessoas, os desencontros e a definição da emotividade. A psiquiatria mundial, melhorou notavelmente com a análise das perturbações sexuais, sobretudo ao nível da infância, a sua timidez e a sua impossibilidade de entender. Nem todos aceitaram esta parte da teoria, como, aliás, tem acontecido com os meus conceitos de mente cultural, que implica as transacções sociais nas dificuldades de aprendizagem das crianças, especialmente literacia e aritmética. Ou as formas de ensinar dos preceptores, usando imagens, a realidade enquanto se anda pela geografia que habitam, entre as etnias citadas, enquanto entre nós há o predomínio dos livros e dos espaços fechados, onde ler e decorar são os substitutos da experiência e dos experimentos. Nas escolas em que tenho feito trabalho de campo, as aulas dadas  ao ar livre aprendendo-se a medir, a ver distâncias, a apontar as fórmula numéricas necessárias, introduzindo-se ou desenvolvendo-se a aritmética, pasaando pelos sítios que a história narra em livros, são um sucesso.

 

Entre várias etnias, nomeadamente as citadas, o xamã não é feiticeiro, respeita-se o seu silêncio e o povo, o dele. Não há divindade entre os curandeiros, apenas pessoas que sabem e vivem de curar doentes ou de prevenir doenças. Mas há hierarquias: há os que parecer saberem mais, há os preferidos pelos seus dotes de curar, há os de quem se foge por parecer adivinharem o pensamento ou, ainda, por ser parente ou amigo. Relação que tira a força do curandeiro, a emotividade, claro, está no meio, por isso o xamã toma distância com o povo para não criar suspeitas de favoritismo ou de mal querer. Em geral, os curandeiros (palavra abrangente de xamã, machi, feiticeiro, ervanário) não costumam comercializar os seus saberes: a cura fica mal, não comentam como foi feita, dá azar, no entanto, têm discípulos, como provam Luís Silva Pereira, 2000, ISPA: Médico, Xamã ou Ervanária? Émile Durkheim, no seu livro de 1912, Les structures élémentaires de la vie religieuse, Felix Alkan, Paris. Ou, ainda, a minha própria experiencia, que passo a narrar.

 

As nossas terras rurais, no Chile, estavam habitadas por picunche, entre eles, havia uma machi, Dona Trânsito, num dia qualquer das nossas férias, a nossa Senhora mãe adoeceu. Não havia médico por perto nem carro: o do pai, com ele na indústria, o da avó, com o seu novo marido na cidade – tinha ficado viúva do pai do nosso pai e casou de novo com um sobrinho por afinidade, marido/sobrinho que lhe geria as terras e tomava conta dela. Os empregados do fundo, disseram de imediato: Don Raulito, vá falar com a Dona Trânsito; em cinco minutos estava na sua casa, na parte alta do cerro, contando-lhe o que se passava. De imediato comentou: coitada da patroa, tão boazinha como ela é, merece o melhor tratamento. Acendeu um braseiro, procurou bosta seca, pô-la a arder e do resultado do dejecto animal preparou um mate, encheu um cabaço de água quente e disse: corra, Don Raulito, mas não diga o que eu fiz. Se conta, o remédio não melhora ninguém. A Mãe, com uma bombinha, bebeu do cabaço lentamente e com açúcar, seguidamente adormeceu durante muitas horas. Eram as virtudes hipnóticas da bosta, que contém elementos opiáceos (depois da erva ser digerida pelo animal e queimadas as bactérias no braseiro). Infelizmente, já bem, a Senhora Mãe perguntou-me o que tinha bebido que a tinha curado; rompi o segredo, falei, e a mãe vomitou. O recado da Dona Trânsito resumia-se ao facto de a mãe não associar a bebida ao dejecto animal. Para os que estão dentro da cultura rural eram apenas ervas, mas a nossa mãe estava longe dessas ideias. A questão não se colocava no narrar, mas na associação a elementos que, activos, sem prévia secagem, causam náuseas. Os dejectos do animal contêm as ervas que consumem: cidreira, Lúcia lima, chá de crispe, elementos que adormecem e permitem a descontração do corpo. Se o corpo fica crispado de novo, as dores são mais fortes pela contradição, em pouco tempo, entre o relaxamento e as novas náuseas: como dizem por ai, está tudo na mente.

Nenhum feiticeiro é divino, perde o seu poder se assim for tratado.

 

Entre nós, o assunto parece ser diferente. Primeiro, o saber não aparece das formas culturais da vida, aparece da boca do professor que ensina livros com descobertas novas sobre a saúde, após pesquisa, prova em contrário e nova prova a favor, o que forma a hipótese e cria uma tese. Depois, acompanhados com o professor, seguem-se anos de prática com doentes até ao dia da especialidade. Para qualquer doente ou utente, e por ser parte da sua cultura no sentido antropológico, o médico é um santo, por saber converter a doença em saúde. Conversão que leva o médico a aceitar o emolumento pago pelo hospital, que hoje em dia, após as reformas do actual governo, é menor, mais são só as horas de trabalho. O médico ocidental não se orienta pela mente cultural a que, por sua vez, é a lógica da cultura. Mas de que cultura falamos: a popular ou a cultivada em laboratório. A primeira tem também um laboratório: os anos de experimentar em doentes da etnia, melhorando os conhecimentos, como Malinowski analisa no seu livro póstumo, A Dinâmica de Cultura, terminado em 1944, ano em que faleceu, publicado em 1961, University of Chicago Press e CUP, Grã-Bretanha.

 

Para o doente, o médico é um santo: cura e revela as formas de curar, reune a família e explica os cuidados que devem ser tomados com paciente e não aceita pagamentos extra. Apenas presentes, como tenho observado nos hospitais e nas consultas privadas. Excepto se aceitar nada dizer…

 

Há duas diferenças entre a medicina popular, necessárias de salientar: a do povo, que se orienta pelo experimento e a investigação, como analisa Malinowski no seu livro de 1922: The Argonauts of Western Pacific, Routledge and Kegan Paul, Londres, em que dedica vários capítulos ao saber fisiológico do corpo. Para tornar a viver, eram abertos os corpos mortos, retiradas as vísceras de forma ritual, enterradas ao pé do corpo dissecado, para o dia em que a Baloma os tornasse a trazer desde a Ilha dos Mortos ou Tuma, para a vida normal. Por vezes, e como ensaio, os mortos apareciam no continente da Kiriwina para terminarem os debates que mantinham em vida, como o próprio Bronislaw Malinoski fez, enquanto aprendia fisiologia dos Massim. A segunda diferença, é a cortesia dos curandeiros com os seus consultantes, serenidade que podem manter por não haver comércio de troca de moedas, apenas de pessoas e saberes. Sem essa serenidade, não podem ensinar. Alguns dos nossos médicos pensam-se pessoas divinas. Não é certamente o caso dos que, nestes dias, tratam do meu corpo, aos que agradeço, dentro dos limites da não divindade. São pessoas simpáticas, amigas, calmas e serenas.
Apenas não esquecer que o povo tem a sua medicina e fisiologia, que tenho aprendido ao viver com ele por bastos anos e em diferentes continentes…e classes sociais, especialmente curandeiros e médicos…

 

 

A seguir –  A SAÚDE EM PORTUGAL

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