GIRO DO HORIZONTE – Pirómanos – por Pedro de Pezarat Correia

 

Na última semana estive “desembarcado” da Viagem dos Argonautas e nem sequer pude ter uma atenção para as questões que João Machado colocou a propósito da minha controlada satisfação com os resultados nas presidenciais francesas. Mas é um tema que continuará em agenda e dá para irmos acrescentando algumas reflexões.

As ondas de choque da eleição de Hollande serão de repercussão prolongada, mas já começaram a dar sinais. O discurso errático dos líderes europeus já mudou o acento tónico para o crescimento. O primeiro-ministro português depressa entrou em sintonia, no seu sermão diário a austeridade cedeu lugar ao ajustamento financeiro e agora descobriu que este faz parte da estratégia de crescimento. Provavelmente quer referir-se ao crescimento do nosso desespero.

Passos Coelho começa a dar sinais perturbantes de um principiante da política apostado em fazer doutrina. Faz lembrar o sapateiro que vai além da chinela. Não sei se terá aprendido nos bancos dos cursos de verão da “Jota” – se o foi há que desconfiar da pedagogia política de um partido que se diz social-democrata – o pensamento que nos vem debitar, mal-alinhavado e radicado no mais serôdio liberalismo, desdramatizando o desemprego e conferindo-lhe um estatuto de normalidade no tipo de sociedade em que se revê. Encara o desemprego com naturalidade, mais, gosta de desemprego – dos outros, evidentemente – porque sabe que o desemprego é um útil instrumento do trabalho barato, do lucro fácil, da fragilização da capacidade reivindicativa dos trabalhadores, a arma mais eficaz para a divisão, a manipulação e a ruptura no seio do mundo laboral. Passos Coelho expressa a opção de classe com que se identifica. É preciso “domesticar” os trabalhadores, acentuando a sua condição de elo mais fraco do aparelho produtivo. Não é insensibilidade do governo e, particularmente de Passos Coelho para este drama, como do PS reiteradamente se ouve. É uma opção conscientemente assumida e que tem um claro conteúdo ideológico. É o regresso ao liberalismo mais retrógrado e reaccionário do Portugal de antes do 25 de Abril e da Europa do século XIX. Confiemos que as trabalhadoras e os trabalhadores portugueses encontrem a forma justa de lhe recordar que já não estão no ante-25 de Abril e muito menos no século XIX e, para tal, saibam dar as respostas apropriadas.

Apesar de tudo eu creio que o que de mais significativo se passou na última semana foram as eleições na Grécia.

 

As ondas de choque da Grécia são muito mais fortes do que as de França, porque assustam. Assustam financeiros, grandes capitalistas, governantes, gurus das instâncias supranacionais. E por isso é visível a despudorada campanha europeia de intimidação já concertada contra os eleitores gregos. Não é fácil forçar a Grécia, que pode ser dispensável na zona euro mas não na UE e que é indispensável na OTAN, que tem uma posição geoestratégica fulcral nuns Balcãs sempre instáveis e que são o ventre mole da Europa, que dispõe de uma ligação privilegiada com um Chipre dividido, que mantém uma vizinhança difícil com a Turquia mas com quem poderá passar a partilhar as razões de queixa contra a UE, que guarda uma relação cultural fácil com a Rússia que não desperdiçará a oportunidade para a poder reforçar, que está geograficamente próxima de um Médio Oriente em convulsão permanente. Reduzir o problema da Grécia à questão da dívida, do défice, do incumprimento das decisões de uma troika detestada e mantê-la na ameaça de banca-rota, parece-me uma política de vistas curtas. Ou será que se deseja mesmo um caos social na Grécia, para justificar uma intervenção externa e impor um regime de força a pretexto dos riscos de contágio? Já se previu o que significará tal precedente na UE?

O cenário é demasiado negro, mas parece haver sempre uns pirómanos prontos a brincar com o fogo. E os apoiantes europeus de George W. Bush para a sinistra e desastrosa aventura do Iraque ainda continuam por aí.
 

3 Comments

  1. Estou muito de acordo com a análise que faz. Quando se acusa o primeiro-ministro de incapacidade ou de insensibilidade, está-se, de certo modo, a branquear a acção deletéria deste executivo, como se o sistema fosse bom, mas falhasse devido a falhas ou lapsos humanos. Não. O sistema é insensível aos dramas que a sua aplicação suscita. Sócrates sabia isso e mentia-nos. Esta oligarquia neo-liberal , no essencial, está a obrigar-nos a revisitar o país que tínhamos deixado em Abril de 74. Sim, temos uma Constituição e adquirimos direitos que julgávamos inalienáveis. A Constituição não é cumprida e os direitos adquiridos vão-nos sendo retirados um a um. Podemos falar, mas o que dizemos não tem qualquer influência no rumo dos acontecimentos. As lutas sindicais também não parecem estar a produzir qualquer efeito. Este partido que se afirma social-democrata, mas que é neo-liberal , tem na sua linha genealógica a União Nacional e a Acção Nacional Popular. Portanto, Passos Coelho, honrando os avoengos, está, com a sua insensibilidade, a tentar fazer o que Salazar fez no princípio do seu consulado – arrumar a casa, pôr as contas em ordem, sacrificando os mais vulneráveis. Em suma, estou plenamente de acordo com o que diz – só discordo num pormenor: de que o sapateiro não possa ir além da chinela. Apeles parece dar razão ao que Tito Morais, num discurso parlamentar, disse sobre as competências – que os cidadãos deviam deixar a política para os políticos. A política é assunto de todos. política é uma coisa séria demais para ficar entregue aos políticos. «Confiemos que as trabalhadoras e os trabalhadores portugueses encontrem a forma justa de lhe recordar que já não estão no ante-25 de Abril e muito menos no século XIX e, para tal, saibam dar as respostas apropriadas». Ora aí está.

  2. Estou de acordo com o Carlos Loures quando diz que a política é assunto de todos porque é uma coisa séria demais para ficar entregue aos políticos profissionais. Mas como políticos somos todos nós, entregar a política aos políticos é entregá-la à nação. Ou devia ser…Quando no meu GDH usei a metáfora do sapateiro é porque não a entendo como aplicada àquele que vai além da sua profissão, mas sim o que, mesmo na profissão, vai além das suas competências. Podia ter usado a do “Princípio de Peter” com a mesma intenção.Já agora, mais um desabafo: esta minha resposta sai quando acabo de ver na TV a notícia sobre a farsa do protocolo adicional, ou lá como se chama, que vem confirmar o que aqui temos escrito sobre o discurso simulado ou a incapacidade do PS fazer oposição credível e eficaz; inventaram esta manobra para acabarem por ser empalmados pelo PSD/CDS para fazerem passar na AR uma “mão cheia da nada”, exactamente no dia em que chega mais uma visita da “troika”, para poderem exibir o activo do consenso e da paz social, tão enaltecida por Cavacos, Coelhos, Portas e C.ª. É o presente do PS que está absolutamente à altura do que já foi dado pela UGT. Confesso que uma das coisas com que “vou aos arames” é quando querem fazer de mim parvo.Entretanto todos os indicadores mostram como nos vamos afundando com estes aprendizes de timoneiros ao leme.Pedro de Pezarat Correia

  3. Parece-me que a manifesta incapacidade de o PS fazer uma oposição credível decorre da coincidência de objectivos – este PS, apenas difere do PSD em questões de pormenor. Não me admira que assim seja – mas surpreende-me, isso sim, que a gente de esquerda que existe no Partido Socialista aceite conviver com esta direcção tão vincadamente neo-liberal. Mário Soares não tem razão para protestar – abriu a porta a esta gente e agora faz o papel de virgem no bordel? Não convence.

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