«E uma estúpida derrota já me empolgava todo, forçando-me ao choro. Desencadeei então um ataque brutal a todo o meu corpo pequeno, cravei as unhas nas palmas das mãos, aguentei-me. Mas o Reitor devia ter percebido a minha luta, porque afrouxou na sua atitude hirta, explicando-me agora, por frases cheias de curvas, o alto benefício de Deus que baixara sobre mim o seu olhar de misericórdia, a suprema dignidade do sacerdócio, o favor de D. Estefânia, essa piedosíssima senhora, que me libertara da sorte da minha raça. E olhando no tecto a presença de Deus, ou cerrando os olhos em compunção interior, começou a contar a minha história triste que eu ouvi atentamente, porque, afinal, com grande surpresa minha, eu não a conhecia. O meu pai morrera, a minha mãe era pobre, eu brincara na lama da minha condição, – sim. Mas nesse tempo de infância, havia só a minha infância e nada mais. Porém, o Reitor descobria aí o futuro que me aguardava não bem apenas o da fome e do cansaço, mas o das trevas e da perdição. E tudo isso vinha na sua voz neutra, impessoal, de puro instrumento da verdade, com uma força incrível de exactidão e tormento. Num instante de silêncio, levantou-se-me, na doçura do sol, o bater alegre do tanoeiro. E eu senti, como não sei explicar, que o tanoeiro e o sol, e tudo o que era do mundo, tinham um vício secreto, uma sujidade intrínseca de pecado.»
(in Manhã Submersa)
Manhã Submersa, Aparição, Vagão Jota, vários volumes do diário intitulado Conta-Corrente são obras, depois de lidas, mais que suficientes para se considerar Vergílio Ferreira um Mestre. Literariamente, Vergílio Ferreira foi de início influenciado pela corrente neo-realista escrevendo alguns romances de intervenção social como Vagão Jota e Mudança. Abandonará este posicionamento estético – ideológico, depois da publicação de Manhã Submersa e, sobretudo, de Aparição, aderindo a preocupações de natureza metafísica e existencialista. A sua prosa, converge na tradição queirosiana, e é uma das mais inovadoras do século XX. Manhã Submersa relata a trajectória de uma criança de 12 anos, de família pobre, que é obrigado sob a influências a estudar num seminário. O seu despertar para a vida, entre a austeridade da casa senhorial de uma tutora que o escraviza na religião, benemérita que faz pagar bem o preço de ajudar uma família que vive na miséria, a sensualidade da sua aldeia natal e o silêncio das paredes do seminário. Tudo se desenrola em torno das vivências e sentimentos que o jovem seminarista vai experimentando. Num ambiente negro, triste, ríspido e severo do seminário, o jovem descobre-se e descobre o mundo que o rodeia, a repressão na educação, a pobreza da sua terra, as desigualdades sociais, o desejo do seu corpo, a camaradagem, a amizade e o amor. Manhã Submersa obteve o Prémio Fémina em 1990 e deu lugar a um filme realizado por Lauro António.
Executei a capa de Manhã Submersa para a bem conhecida colecção dos Livros de Bolso Europa América e realizei o grafismo para a Fotobiografia de Vergílio Ferreira, organizada por Hélder Godinho e Serafim Ferreira, editada pela Bertrand, para a qual fiz um retrato seu, mas nunca conheci pessoalmente o Vergílio Ferreira. Não aconteceu. Conheci a sua obra. Obra de Mestre.
As obras de Vergílio Ferreira, que são uma só, a romanesca, a ensaística e até mesmo os seus diários, formam uma obra que se liga entre si, de grande unidade e enorme valor. Os seus romances espelham frequentemente de molde ensaístico, os problemas da arte e da civilização europeias. O reconhecimento da importância da sua criação literária, caracterizada por um profundo humanismo, para além de uma consagração do público e da crítica especializada, também se traduziu na atribuição de prémios literários. Para além do Prémio Femina com o romance Manhã Submersa obteve outros prémios como o Prémio do Pen Club, o Prémio Europália e o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, ganho por duas vezes, primeiro com o romance Até Ao Fim e depois com o romance Na Tua Face. Em 1992 foi galardoado com o Prémio Camões. Em 1993 recebe o Doutouramento Honoris Causa, na Universidade de Coimbra. Várias obras suas foram adaptadas ao cinema: além de Manhã Submersa, já mencionada, Cântico Final, e os contos O Encontro, A Estrela e Mãe Genoveva. Vergílio Ferreira manteve-se à margem de polémicas estritamente políticas e de grupos literários, o que lhe valeu algumas críticas por parte de outros nomes do mundo cultural português.
Vergílio Ferreira nasceu em 1916 na Serra da Estrela, em Melo (Gouveia). Descendente de pequenos camponeses aos dez anos de idade ingressou no seminário do Fundão, que depois abandonou, deixando-lhe uma má recordação que só atenuou após a escrita de Manhã Submersa. Logo após deixar o seminário, acabou o curso liceal no Liceu da Guarda e cursou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra onde se formou em Filologia Clássica. A par do trabalho de escrita foi professor de Português e de Latim em várias escolas do país, Faro, Bragança, Évora (que lhe deixou profundas marcas em vários romances nomeadamente em Aparição), e Lisboa, no Liceu Luís de Camões. Embora formado como professor, actividade que exerceu durante décadas, foi como escritor que Vergílio Ferreira realmente se distinguiu, em que realmente foi MESTRE.
Mas pouco se fala do Vergílio Ferreira Poeta. No entanto desde muito jovem que escreveu poesia, ainda que quase toda ela esteja inédita. Todavia os seus textos estão repletos de um dizer eminentemente poético.
Veio Ter Comigo Hoje a Poesia
Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.
Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.
Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
— a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.
Vergílio Ferreira, in «Conta-Corrente 1»