Tinha dito que a esta Praça traria outras vozes que defendam a Revolta. Numa entrevista conduzida por Nuno Ramos de Almeida, publicada em 5 Maio no I, o Professor Boaventura de Sousa Santos defende que vivemos tempos de revolta. A saída para Portugal passa pela desobediência ao Memorando da troika – acredita que existe uma alternativa à política da troika. A formação do Observatório sobre Crises e Alternativas pretende municiar a sociedade civil de pistas para trilhar um outro caminho. Vamos publicar essa entrevista em dois dias – hoje e amanhã. (CL)
O presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, disse recentemente que o modelo social europeu tinha morrido.
O que se pode esperar de um homem da Goldman Sachs? A Goldman Sachs é uma espécie de companhia majestática das Índias. A Europa tem a democracia suspensa. Nós estamos num sistema colonial em que os grandes líderes não foram eleitos: não o foi Lucas Papademos, Mario Monti, Draghi. Esses homens pertenceram todos à mesma empresa. Leia uma carta pungente de um antigo executivo da Goldman Sachs, ao “New York Times”, que sai em ruptura e denuncia o monstro em que se tornou esta empresa. Ela já não cuida dos seus clientes, cuida de acumular capital e poder. É uma empresa colonial que tem poderes de soberania sobre os povos. O poder destas pessoas é assente no modelo de acumulação do capital financeiro. Elas vêem o Estado social, grande mecanismo de distribuição dos rendimentos, como um inimigo. Os impostos, para eles, são anátemas.
Antes de a troika entrar em Portugal, o professor assinou com personalidades de vários quadrantes políticos e sociais uma carta que foi interpretada como um apelo a uma espécie de união nacional para receber a ajuda internacional. Votaria a assinar essa carta?
Essa carta procurava produzir uma alternativa nacional contra a troika e as medidas que se adivinhavam. A carta era provavelmente ambígua para ter esse grande leque de assinaturas, mas defendia em si mesma que a coesão nacional não podia ser posta em causa e que a protecção social tinha de ser mantida, mesmo numa situação de crise. Eu assinei-a pensando que, se nós tivéssemos a força de uma grande união, podíamos ter evitado o pior. Hoje, retrospectivamente, acho que foi uma posição um pouco ingénua porque os dados já estavam todos lançados. O projecto neoliberal estava no terreno. A direita portuguesa, tal como a direita europeia, o que quis fazer foi conseguir através de uma crise europeia aquilo que não obteve por eleições. Isto é a sua grande oportunidade. Vimos isso com Passos Coelho. Ele quer ser mais exigente e duro com os portugueses que a troika, para destruir o modelo social europeu.
Não acha que o problema foi pensar que a crise é igual para todos? A sua posição sobre a crise ou a do banqueiro Ricardo Salgado, que assinou o documento, nunca serão iguais. Mesmo nesta crise, há quem ganhe muito.
O que houve aí foi a expressão de uma tensão que existe no terreno. O documento não expressava um posicionamento anticapitalista, com que eu me identifico. Naquela altura, do que se tratava era da luta do capital nacional contra o capital alemão – de alguma maneira, de uma forma caricatural, aqui representado pelo Álvaro Santos Pereira e o Vítor Gaspar. O nosso ministro das Finanças, Vítor Gaspar, tem passaporte português mas é alemão. Foi criado pelos alemães, foi educado por eles no Banco Central Europeu. Este homem vê o mundo pelos olhos da Alemanha. A capacidade de entidades como a Goldman Sachs vê–se aqui: os seus quadros têm passaportes diferentes, mas pensam exactamente da mesma maneira. Para homens como o António Borges, que é outro caso notável deste tipo de orientação política, não existe uma noção de integridade nacional ou coesão nacional. Quando esteve à frente dos fundos de investimento foi totalmente contra qualquer regulação do capital financeiro. Não admira que agora não possa ter outro tipo de preocupações que não as do capital financeiro no processo das privatizações. Estes quadros formados na Goldman Sachs é que a fazem ser um potentado. Não é por acaso que ela é conhecida como a lula- -vampiro. Oferece dirigentes aos governos em crise, como Monti e Papademos, e quando eles saírem do poder oferece–lhes lugares. Estes homens estão entre o poder económico e o poder político.
Há alguma alternativa económica e política a este programa da troika?
Absolutamente. O que é extraordinário é que propostas que há dez anos eram consideradas revolucionárias, como a taxa Tobin, sejam hoje defendidas por Sarkozy e pela directora-geral do FMI, Christine Lagarde. Quando começou a crise, no livro que eu escrevi “O Ensaio Contra a Autoflagelação” defendi que não havia um problema da dívida grega, há uma dívida europeia que, com eurobonds, se resolveria na altura – uma proposta vista nessa época como revolucionária. Hoje é partilhada pelo FMI. O Fundo Monetário tem a sua política própria e não aceita estar às ordens da Merkel, até porque já viu que as coisas estão a mudar na Europa. Há alternativas, o problema todo é que as soluções estão a chegar tarde. A desobediência à ortodoxia neoliberal vai ocorrer no momento do desastre. Por isso é que eu tenho vindo a propor uma desobediência dentro do euro. A alternativa é essa: todos os tratados internacionais aceitam cláusulas de derrogação em situações de crise. Foi assim que a África do Sul pode derrogar as patentes para lutar contra o vírus do HIV. Era uma emergência nacional. O Brasil também o fez.
Mesmo não havendo cláusulas no tratado, nós podemos usar o direito internacional. Temos é de ter líderes que o façam. Há aqui uma emergência nacional.
Mas podemos desobedecer sozinhos?
A desobediência vai ter de começar por alguém, mas depois são necessários aliados. O que está a acontecer na França com as presidenciais pode ser interessante. O problema é uma questão de tempo. Essa desobediência exige três coisas: nós vamos ter de fazer controlo de capitais temporariamente. Vamos ter de controlar durante algum tempo as importações e fazer uma amortização e reestruturação da dívida, uma suspensão do serviço da dívida por algum tempo. Neste momento, o saldo primário da nossa economia é nulo ou positivo. Se nós suspendermos o pagamento da dívida, Portugal começa a crescer. Isto é uma desobediência. Vai-me dizer: expulsam-nos no dia seguinte. A minha teoria é que expulsar Portugal do euro é um risco maior para quem expulsa do que aceitar essa situação. Nós precisamos de líderes que comecem esse processo e, depois, de conseguir apoios que podem vir de muitos sítios, mesmo lugares de onde não se imagina: de um Cameron, da Irlanda ou da França.
Mas para haver uma desobediência em Portugal é preciso um sujeito político que a imponha. Não é certamente o actual governo…
Não é o governo nem é, infelizmente, o Partido Socialista que temos neste momento. O Partido Socialista precisa de se desvincular da assinatura do Memorando. Como é que o pode fazer? De uma maneira muito simples: quem lê o que escreve o “Financial Times” ou os blogues dos quadros dos fundos de investimento já sabe que é dito por eles e, como é uma previsão deles, eles fazem-na acontecer. Todos eles defendem que é necessário um segundo resgate. É preciso mais tempo. O Partido Socialista tem a oportunidade de dizer “nós estávamos comprometidos com o primeiro resgate, mas com mais nenhum”. Assim, desvinculava-se destas políticas. E de dizer aos portugueses que tem de se encontrar uma outra solução. Isto vai exigir que haja algumas mudanças no resto da Europa. Aqueles que fazem este tipo de políticas estão em crescentes dificuldades – veja-se o caso do Rajoy. E não é por demérito dele, porque aplica a mesma cartilha. Nós não precisamos de políticos para a receita que está a ser seguida, porque os homens da Goldman Sachs fazem o trabalho por eles. Dão-lhes os dados e ditam- -lhes as soluções. O problema é que a Espanha é muito importante para os credores. E eles estão aí para receber o seu capital. Daí a pressão sobre a Espanha. Em França, que é o fiel da balança da Europa, há uma opção mais à esquerda, nem sequer muito radical, de Hollande, e há o crescimento da extrema-direita.
Estamos a viver tempos semelhantes aos anos 30 que podem levar à tomada do poder por parte da extrema-direita em vários países?
Acho que estamos a assistir ao que eu chamo um totalitarismo gradual. A democracia continua. Não há estado de excepção. O Tribunal Constitucional não intervém apesar de, no meu entender, a Constituição estar suspensa, assim como a democracia. Sem que tenha havido uma alteração das leis. Há uma certa suspensão da institucionalidade sem que tenha havido mudança do quadro legal. Temos partidos e uma democracia de baixa intensidade. É só para os partidos, porque os grandes partidos pensam todos da mesma forma.
Um oficial superior da PSP defendeu a tolerância zero às manifestações no 25 de Abril. Isso enquadra-se no que diz?
Acho que temos esse risco. No momento em que a democracia se transformar numa questão formal em que as instituições não consigam captar as aspirações dos cidadãos, as pessoas tendem a mover-se para formas pós-institucionais de actuação, isto é, a rua e as praças. Quando isso se dá, há uma tendência autoritária de tentar repor a institucionalidade pela força. Mas nas sociedades democráticas não pode ser assim, porque essa força vai produzir mais rua e tornar os enfrentamentos mais graves. Penso que um país que passou 48 anos em ditadura deve ter um grande cuidado em manter um jogo democrático. Infelizmente, caminhamos para um sistema em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas. Quando fazemos investigação vemos as pessoas cada vez mais desanimadas. Sujeitas ao veto do patrão, discriminadas nas instituições de solidariedade quando, por exemplo, não são católicas. Se forem prostitutas, não têm direito ao rendimento social de inserção. Estamos numa sociedade em que o terço de baixo da sociedade tem cada vez menos acesso à democracia.
(Conclui amanhã)