As Regras de Oiro da Senhora Merkel (I) – por Fernando Pereira Marques

“Pré-publicação do nº 73 da “Finisterra” no prelo.”

 

Os tempos que estamos a viver são bem a demonstração, se dúvidas ainda houvesse, de como a História é o produto não só das circunstâncias materiais – infra-estruturais, como diria Marx –, mas também das superestruturais e, sobretudo, da acção dos seus protagonistas. E esta acção está intimamente ligada a opções ideológicas, interesses, conflitos por eles impulsionados, assim como à qualidade humana e intelectual, em especial dos que assumem papéis mais destacados.

A primeira metade do século XX foi determinada por, entre outras, as personalidades  de Hitler, Mussolini, Estaline e, obviamente, pelas circunstâncias históricas concretas que permitiram que os seus projectos ideológicos, de diferente natureza, moldassem  acontecimentos e políticas. Mas, do mesmo modo, não fossem homens com a envergadura de De Gaulle, Churchill e Roosevelt, o desenlace da II Guerra Mundial teria possivelmente sido outro. Como já parece ter-se percebido, a História não tem um sentido nem uma coerência, nem sequer é função, de uma forma mecanicista, unicamente dos factores sociais ou económicos. Deste modo, não é despiciendo, para explicar o impasse dramático com que a Europa se depara, a mediocridade dos seus principais dirigentes – para só falarmos deste continente.

Constata-se tal facto quando, por exemplo, se ouvem as declarações do ministro das Finanças alemão Schäuble subvalorizando as consequências de uma eventual saída da Grécia da zona euro e até da UE, não só pelos efeitos de dominó que isso teria, sobretudo sobre países mais vulneráveis como a Irlanda, Portugal ou a Espanha, mas também por aquilo que esse país representa na perspectiva da situação geo-estratégica nos Balcãs e até pelo peso da componente militar nos seus poderes internos. Declarações e atitudes do amigo dilecto do ministro Vítor Gaspar que se inserem na visão das coisas da senhora Angela Merkel, a qual associa, na sua pessoa, uma lamentável mistura de arrogância teutónica, boa consciência luterana e rigidez autoritária estalinista.
Não sei se ela – ou eles, os governantes alemães – leram a obra de Keynes As Consequências Económicas da Paz, onde este analisa e crítica as desastrosas medidas tomadas na Conferência de Versalhes em relação à Alemanha.

 

As teses essenciais aí defendidas, repetidas em textos dos anos 30 após o crash da Bolsa nos EUA e suas repercussões,  serviriam de base à  doutrina a que ele deu o nome e insistiam no facto de que a humilhação dos povos e a prossecução de políticas que geram recessão e empobrecimento, conduzem as sociedades à desagregação e abrem o caminho ao desespero de multidões, caldo de cultura de todos os extremismos. Os factos viriam a dar-lhe razão e estiveram na origem do retorno à barbárie na Europa, e não só, durante um longo período, acompanhada pelo massacre de milhões de seres humanos.

 A Alemanha de hoje foi o país que mais usufruiu da forma voluntarista e calculista como foi gerida a criação do euro e o alargamento da UE baseados em meros critérios mercantis. Ou seja, prosseguiu-se, particularmente após Delors, uma estratégia economicista, crescentemente ultraliberal, suportada pela maior parte dos governantes europeus de vistas curtas e pela cegueira dos burocratas de Bruxelas, agora encabeçados pelo antigo marxista-leninista Durão Barroso. Secundarizou-se a dimensão sociopolítica, a integração orçamental, a vertente cultural e a fundamental participação legitimadora e democrática dos povos. Por outras palavras, o projecto europeu reproduziu e espalhou a contra-revolução iniciada por Thachter e  Reagan. Nos EUA, como na Europa, vieram a afirmar-se políticas de desmantelamento de todos os elementos de regulação que desde o New Deal   e a II Guerra Mundial, disciplinavam e controlavam a cupidez da banca e da finança.

É neste contexto que, com repercussões no plano global, a euforia especulativa baseada na financeirização das economias promoveu o endividamento público e privado, colocando os bancos e outras instituições semelhantes no centro das decisões e permitindo a emissão de dinheiro virtual em escala nunca antes vista, nomeadamente através dos hedge funds e de outros produtos derivados. No caso norte-americano, tímidas tentativas reguladoras da Commodity Futures Trading Comission foram neutralizadas graças à intervenção activa de Alan Greenspan  e à cobertura do próprio presidente Clinton. Em meados da administração clintoniana, o volume de derivados tinha crescido até 13 triliões de dólares ( em 1998 o PIB dos EUA era de 8,7 triliões). Leia-se o que escreve a propósito um autor citado por Laurence Lessig, num livro fundamental intitulado Republic, Lost: “More than 30 years of deregulation and reliance on selfregulation by finantial institutions championed by former Federal Reserve chairman Alan Greenspan and others, suported by sucessive administrations and Congresses, and actively pushed by the powerful financial industry at every turn, had stripped away key safeguards, which could have helped avoid catastrophe. ” A situação agravou-se durante os mandatos de George W.Bush e mesmo Obama limitou-se, como explica Joseph E. Stiglitz , a tentar gerir os estragos, mas sem enfrentar  os poderosos interesses em jogo, apesar de, em 2008, ter implodido a Lehman Brothers desencadeando a espiral de crise em que hoje o sistema está mergulhado. E porque será? Nos EUA existe uma democracia limitada,  é bom que de uma vez por todas se comece a afirmá-lo claramente,  em bom rigor uma oligarquia, onde o Estado, os partidos da alternância – Democrata e Republicano – , as liberdades e a sociedade estão subordinados aos detentores do poder real : os lobbies que são os agentes organizados dos interesses dominantes. Leia-se, para ilustrar esta asserção, outra passagem, desta feita de um relatório recente da Finantial Crisis Inquiry Comission: “As [this] report will show, the finantial industry itself played a key role in weakening regulatory constraints on institutions, markets, and products. It did not surprise the Comission that an industry of such wealth and power would exert pressure on policy makers and regulators. From 1999 to 2008, the finantial sector expended $ 2.7 billion in reported federal lobbying expenses; individuals and political action committee in the sector made more than $1 billion in campaign contributions. What troubled us was the extent to which the nation was deprived of the necessary strength and independence of the oversight necessary to safeguard financial stability. ” Significa isto que, como aliás é quantificado na fonte utilizada,  o lobby da “finantial industry” – onde se destaca a J.P. Morgan agora também em turbulência – ultrapassa em largos milhões de milhões todos os outros lobbies, o que ajuda a explicar a domesticação de eleitos, governos, presidentes e o desvirtuamento da ideia democrática. Na Europa, já são vários os empregados da Goldman Sachs presentes directamente em governos ou noutras instituições politicamente determinantes.

É esta a realidade que se expandiu e tem condicionado a economia e a finança internacionais. Inclusive na UE onde, após a senhora Thatcher, os Blair, Schröder, Cameron, Barroso, Sarkozy, Berlusconi, Merkel e tutti quanti se limitam a cumprir ordens emanadas dos “mercados”, essas entidades deus ex machina que são materiais e têm rostos. Gerou-se uma interdependência que não é a da positiva e necessária cooperação construtiva entre Estados e nações, mas sim o fruto do estádio supremo do capitalismo financeiro ultraliberal, também designado por globalização, filtrado através das realidades específicas dos diversos países. Os verdadeiros conselhos de ministros deslocalizaram-se para as bolsas, as sedes dos principais grupos económico-financeiros ou  para as agências pretensamente de rating.

O desastre era inevitável e – como já acontecera em 1929 – repercutiu-se todos os azimutes, provocando a derrapagem das contas públicas nacionais,  obviamente de forma particularmente violenta nos países mais vulneráveis e periféricos, forçados a pedir empréstimos a taxas usurárias para colmatar desvios que a riqueza produzida não sustentava ou a recorrer mesmo à intervenção de organizações exteriores, como a Irlanda, a Grécia e Portugal. As transferências de capitais e mais-valias para off-shores e paraísos fiscais, as derrapagens de orçamentos nas obras públicas, projectos inúteis e faraónicos a custos inflacionados (auto-estradas e estádios, p.ex.), BPNs, PPPs, Duartes Limas, Oliveiras Costas, etc. , isto é, as jogadas ousadas dos senhores de indústria, os negócios de governantes levianos, de empresários, gestores e afins corruptos, entre nós e noutros lados, ajudaram aos níveis insustentáveis da dívida nos respectivos âmbitos nacionais. Mas eles não fizeram senão aderir ao espírito da época, integrar-se na lógica do sistema e, com a conivência do poder político, praticar à sua dimensão o que em termos globais se praticava.

(Conclui amanhã)
 

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