FIGURAÇÃO – por Manuela Degerine

Um Café na Internet

 

 

 

 

 

 

 

 

Vou uma vez por semana ao museu do Louvre (ou ao museu de Orsay) e, no trajeto de ida e volta, que percorro a pé, passo pela Madeleine, pela Concorde, atravesso o jardim das Tuilleries e a ponte de Solferino, admiro, ao longe, a catedral na sua ilha… Marco encontros no café do hotel Concorde Saint-Lazare, bonito, acessível, sossegado: o Grand Hotel Terminus onde Eça de Queirós se instalou no verão de 1896 quando a esposa foi com os meninos para banhos. Que o leitor incomodado com os “clichés” do turismo tenha paciência porquanto, vivendo em Paris, ninguém pode ir ao cinema, comprar uma camisola, encontrar-se com amigos, estudar ou trabalhar, se os lugares-comuns desta indústria lhe causam alergia. Quem sofre com tal intolerância, emigra para o Cacém e, em França, pode refugiar-se em Sartrouville, por exemplo, onde o chavão turístico não lhe cairá em cima, posso garantir, pois lá trabalhei durante cinco anos (que me pareceram cinco lustros), todavia em Paris, meu amigo, encontra-se obrigatoriamente no espaço da História, da literatura, da pintura, do cinema, da fotografia, da moda, da gastronomia, da banda desenhada, num interminável labirinto de citações facilmente utilizáveis em campanhas publicitárias. Na primeira viagem a Paris, era miúda, tive a impressão de passear dentro do manual de francês pois, naquela época, pouco após os dinossauros, os livros de língua estrangeira continham textos literários, através dos quais eu compusera uma certa imagem da cidade. Mais tarde, aluna da Faculdade de Letras, depois de ler L’Éducation Sentimentale de Flaubert, confrontei com o romance todos os espaços por onde passava… Rue du Bac?… A pintura também foi representando Paris através dos séculos, os Impressionistas alargam-se mesmo por toda a região periférica, Asnières, Colombes, Chatou, Argenteuil, talvez até Sartrouville, onde aliás Guy de Maupassant, que não era pintor mas com eles conviveu, possuía uma casa… Quanto ao cinema, francês ou não, mostra Paris há mais de cem anos. E quem não conhece esta cidade vista por Brassaï, Man Ray, Doisneau, Willy Ronis, Cartier-Bresson?… Não é possível chegar a Paris como ao Cacém: sem imagens. Cada leitor, consoante a sua cultura e interesses, completará a enumeração.

 

Embora o preço do metro quadrado tenha, nos últimos trinta anos, devido a investimentos do mundo inteiro, empurrado milhares de parisienses para o exterior e por isso os criadores de agora, na sua maioria, residam na periferia, Paris continua a exercer uma força centrípeta em relação à Île de France, doze milhões de habitantes, a toda a França, mais de sessenta, aos países francófonos, ao mundo inteiro, permanecendo uma cidade viva, muito nossa contemporânea, com o Vélib, Paris-Praia, uma atividade cultural inesgotável, uma atividade económica sadia e uma apreciável qualidade de vida.

 

Até agora eu atravessava o Sena e o Jardim do Luxemburgo, frequentava a Comédie Française e o Centro Georges Pompidou: com um prazer descontraído. Numa cidade, Paris ou Lisboa, interessa-me o cruzamento de tempos, de citações, de signos, de gente passada e presente… Paris é turística desde que há turismo, pensava eu sempre, o turista não me incomoda, por mais monótono que seja, por mais caricatural que se mostre e, se entramos no mesmo museu, não nos situamos na mesma cidade.

 

Ora a França é o primeiro destino turístico do mundo, em 2011 somou 79 milhões de visitantes e, nesta escala, o turismo exerce, pelo poder económico, uma ação colossal. Eu não ignorava tal realidade mas, na maior parte do tempo, menosprezava as suas consequências, limitava o fenómeno a Montmartre, tentando vender boémia, aos africanos, tentando impingir torres Eiffel, às camisolas “I love Paris”, transbordando de tantas lojas, tenho contudo que reconhecer: este grotesco faz parte de uma distorção mais vasta. É que a grande maioria dos turistas vem empurrada pelo desejo mimético, traz imagens maioritariamente formatadas pelo cinema e pela fotografia, busca uma França a preto e branco – que por consequência os comerciantes lhe vendem. Lembrei-me disto, mais uma vez, há poucos dias, indo à Fundação Calouste Gulbenkian ver uma exposição de fotografias de Gérard Castello-Lopes, sim, precisamente: a preto e branco. (Admiráveis aliás tanto pelo valor estético como pelo valor documental. O paradoxo da fotografia: o cúmulo da irrealidade através da fixação de um instante de realidade.) E, no trajeto para o boulevard de la Tour-Maubourg, onde agora se situa a Fundação, atravessei a alameda dos Inválidos. De súbito parei, estupefacta, perante algo que, até agora, não me chamara a atenção: uma “roulotte”. Ali instalada pela marca “Paul” para vender bolos, sandes e bebidas aos turistas, como se a “roulotte” cigana fosse tradição parisiense, como se, caso fosse tradição, houvesse “roulottes” daquelas, de plástico e do século XIX… Mais uma vez, revi as mudanças. Logo que uma loja fecha, livraria, padaria, drogaria, não é raro que ali surja, reluzente, um “bistrot”, isto é: uma tasca. As verdadeiras desapareceram, já que o povo mudou para a periferia, por lá devora sandes turcas, quando não hamburgueres, pois é imigrante e consagra aos Estados Unidos uma veneração despeitada, entretanto em Paris multiplicam-se as outras tascas, falsamente antigas, falsamente populares – com refeições a quarenta euros. Os franceses levam para o emprego, se não houver cantina, uma salada trazida de casa ou comprada com “tickets restaurants”, de boa vontade deixam as tascas aos turistas: come-se lá muito mal.

 

Desta vez senti-me figurante para inglês (ou chinês) ver e interrogo-me sobre o meu papel neste parque de distrações.

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