EM TEMPO DE CRISE, DE FARO COM TRISTEZA, COM RAIVA E COM AMOR, TAMBÉM. Por Júlio Marques Mota.

PARTE I

O telefone toca. Vejo o visor, não reconheço. Domingo de manhã, espanto, atendo apesar de tudo. E estou em férias.

Então, meu amigo, estás no centro da gravidade de um grande drama e a escondê-lo, diz-me ao telefone este meu amigo de longa data, dos bancos da Faculdade.

Não percebo, respondo.

Refiro-me à tua crónica de Faro, à última. Referes-te a empresas para os lados de Coimbra, quanto a violações do Direito do trabalho ou do que poderia e deveria ser entendido por Direito do trabalho, talvez uma Critical Software, talvez uma Câmara Municipal no que diz respeito aos serviços camarários como se nada de igualmente grave se não tenha passado na cidade de que pensas afinal estar a fazer as tuas pequenas crónicas, Faro. E o teu amigo marceneiro que implicitamente admites como sendo filiado no Bloco de Esquerda ou no PC passa ao lado de um grande escândalo ocorrido em Faro quanto aos direitos dos trabalhadores? Essa é que eu não entendo. Ou será que te estava também ele a estudar, a testar a tua consciência política perante esse facto gravoso para todos os trabalhadores, levado a cabo pela entidade patronal e com o silêncio do PS e aí ocorrido.

Sê mais claro, pedi. Ouvi-o longamente. Felizmente ambos usamos o 91 como indicativo, pois caso contrário ficar-lhe-ia uma chamada bem cara.

Acabada a conversa, saio até ao café. De novo a mesma sensação de sufoco. Peço um café, peço uma garrafa de água.

O mês está a acabar e as férias para quem está agora sempre de férias também estão a chegar ao fim. Revejo a conversa telefónica de há pouco, revejo a realidade desta cidade, a deste pais igualmente, a realidade que tentei por pequenos fragmentos agarrar e depois ligar e sou assaltado por uma onda de profunda tristeza.

Sinto-me triste.

Sinto-me triste por este jovem que diariamente me serve uma garrafa de água à noite, promissor chefe de mesa que nunca há-de ser porque o destino lhe fez as voltas com que não contava. Jovem com honra que o desemprego em casa instalado lhe cortou a possibilidade de estudar e mais grave ainda o forçou a entrar em saldo no mercado trabalho para não perder a capacidade de poder continuar a sonhar, em sonhos que se faziam e desfaziam no transporte de mota com o vento insistentemente a cortar-lhe o ritmo de chegada, mota essa que o trazia até aos estudos em Faro. Para a ter teria que continuar a pagar as mensalidades que faltavam ou o banco  ficava-lhe com o veículo em que com alegria transportava os seus desejos e por vezes um outro seu amor, a sua namorada.

Revejo a sua face de alegria a percorrer o espaço entre as mesas sem nunca tocar em ninguém, revejo também a sua visão simplista do futuro. “Abri uma brecha no pesadelo de não ter emprego. Fiz exames para os Comandos. Depois se verá a que ramo militar irei parar”, é o que me diz quanto ao seu futuro. Nada mais lhe interessa.

Lembro-me aqui do fascismo, dos tempos da guerra colonial e lembro-me de ouvir falar em que para muita gente a saída era ou emigração ou a tropa. Lembro-me de ontem, lembro-me de hoje, seguramente lembrar-me-ei ainda amanhã que é desta forma que os fascismos se fizeram, se mantiveram. Estamos a voltar aos anos sessenta, será? Lembro-me de um texto notável de Edward Hugh sobre Portugal onde se fala em suicídio colectivo em Portugal, imposto pela Troika, pelo Bundesbank, pelo FMI pelo BCE, pela Comissão Europeia, e cuja realização estará a ser controlada por agentes nacionais em que espantosamente se votou, apesar de mesmo a Manuela Ferreira Leite ter bem avisado que Passos Coelho era um clone de Sócrates! E prova-o bem, ultrapassando e de que maneira o seu criador, ao ultrapassar ainda mais pela direita a política seguida antes pelo PS. Lamento dizê-lo, lamento senti-lo. A política de hoje não é mais do que a sequência da política de ontem, da mesma forma que a política de amanhã será a sequência da política de hoje. Se estamos dentro do mesmo modelo, logicamente será assim e pode sintetizar-se numa simples expressão: a política de amanhã será sempre a reprodução da política de hoje apenas reforçada nos seus aspectos mais violentos. É assim o neoliberalismo, foi assim o neoliberalismo de Sócrates, é assim o neoliberalismo de Passos Coelho, será assim o neoliberalismo de quem se lhes seguir se nos mantivermos no quadro do mesmo modelo.

Sinto-me triste em saber que alguém se estendeu ao comprido junto uma das passadeiras desta cidade. Caiu. Ia distraída, dir-se-á. Praticamente não conhece nenhuma rua, nenhuma travessa que esteja em condições. Isto, claro, fora da zona de peões da Baixa da cidade. Fora deste perímetro é uma desgraça. Será que a Câmara não dispõe de engenheiros, de mestres, de capatazes, de operários capazes de fazer arruamentos como deve ser? Não acredito. Se assim fosse, o que é impensável claro, eu com facilidade arranjaria um bom operário que explicaria ao senhor Presidente, ainda por cima engenheiro, como se faz uma calçada, como se faz a cobertura de um cano que atravessa a rua e ligado ao esquema de esgotos centrais, como se fixa uma tampa da colecta de águas ou ainda, como se faz uma sarjeta sem levar a que qualquer descuidado possa cair.

E a questão que qualquer de nós pode levantar é então, como é isso possível numa cidade que se quis centro do Turismo, numa cidade que é capital de Distrito? E a resposta é a mesma que pode e deve ser dada para a desregulação consentida ou mesmo desejada para a alta finança: ninguém quer ver. A correlação entre o mau estado das ruas e as obras recentes é quase que total. Onde houve recentes é certo e sabido que a calçada estará em mau estado. Significa isto que os fiscais verificam as condições de habitabilidade do prédio e nada mais. Os empreiteiros refazem a calçada mas esta não é inspeccionada. Não interessa, os peões que tenham cuidado, que vejam onde põem os pés. É simples, portanto e esta é a única explicação que encontro para o mau estado. Nesta situação faz-me lembrar um prédio de construção ilegal que terá sido vistoriado por um funcionário da Câmara Municipal de Coimbra que o terá considerado de acordo com a lei, porque… não levava óculos ou porque estes se teriam partido. E o prédio assim ficou!

O exemplo é afinal bem ilustrativo da lógica neoliberal para a qual quem regula não está cá e por cá queremos dizer estar onde quer que seja para regular porque os agentes privados se encarregarão de o fazer de forma bem mais eficiente, os reguladores existem para assegurar que a regulação cumpre os seus objectivos, as suas metas, levar a que se concretize a subordinação de tudo o que é público ao domínio absoluto de tudo o que é privado. É assim nos Estados Unidos, é assim na City de Londres, é assim com as calçadas em Faro, também. E é assim o modelo neoliberal: Estado mínimo, regulação mínima, liberdade para os capitais máxima.

Sobre os Estados Unidos vejamos um excerto de uma das mais importantes intervenções que sobre a crise e sobre a falta de regulação foi feita no Senado americano, e proferida pelo senador Ted Kaufman. Vale a pena lê-la e ver que toda ela se adapta ao que se passa em qualquer sector: os reguladores têm intencionalmente estado de olhos vendados. É assim em Nova Iorque, é assim em Londres, é assim em Paris e é assim também com as calçadas de Faro

“Na breve história anteriormente delineada, os reguladores estiveram sentados de braços cruzados enquanto as nossas instituições financeiras aumentaram fortemente a sua dívida de curto prazo para financiarem grandes volumes de CDOs  que estavam garantidos por empréstimos subprimes e empréstimos alavancados que financiaram as enormes compras especulativas no sector empresarial.

Eles poderiam ter feito soar o alarme e restringir este comportamento, mas não o fizeram. Eles poderiam ter aumentado as exigências em capital, mas em vez disso deslocaram esta função para as agências de notação de crédito e para os próprios bancos. Eles poderiam ter imposto mais cedo e em maior grau protecções relacionadas com os consumidores, mas não o fizeram. A triste realidade é que os reguladores tinham poderes substanciais, mas optaram por abdicar das suas responsabilidades.

Além disso, os reguladores estão quase totalmente dependentes das informações, análises e dados que lhes são apresentados por aqueles a quem têm a obrigação de regular. No ano passado, o ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, outrora o expoente máxima na defesa do capitalismo do laissez-faire, afirmou que “é evidente que os níveis de complexidade com que os profissionais do mercado, no auge de sua euforia, utilizam as técnicas de gestão de risco e de risco de concepção do produto eram demasiado elevados até para os agentes de mercado mais sofisticados poderem trabalhar de forma adequada e com prudência. ” Penso que, se essas instituições que empregam tais técnicas são demasiado complexas para serem geridas, então, elas são certamente demasiado complexas para regular.

É por isso que eu acredito que reorganizando as entidades reguladoras e dando-lhes competências e responsabilidades adicionais não se tem a resposta. Não podemos simplesmente esperar que os humilhados reguladores ou então os recém-nomeados poderão fazer um trabalho melhor no futuro, mesmo que tentem dar o melhor de si mesmos. Colocar as nossas esperanças em uma autoridade de resolução (autority resolution) é uma ilusão. É como o mestre do porto de Southampton a acrescentar mais salva-vidas ao Titanic, em vez de procurar orientar o navio para fora da zona dos icebergs. Temos de acabar com estas instituições, antes de elas falharem, não ficar com um plano na mão à espera de as agarrar quando falharem.

Para que a nossa economia funcione para todos os americanos, os investidores devem ter confiança no funcionamento honesto e transparente dos nossos mercados financeiros [e das nossas instituições políticas]. Os nossos mercados só poderão desenvolver-se quando os americanos de novo acreditarem que são justos, transparentes e em conformidade com as leis. “ [e as nossa sociedades só se poderão desenvolver democraticamente quando o funcionamento das suas instituições tiver como objectivo servir o bem comum e levar a que os capitais e os seus interesses privados se insiram e estejam conformes aos interesses colectivos, aos interesses públicos.

E o povo americano não merece menos”.

(continua)

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