De cada vez que ela parte – Ethel Feldman


Ethel Feldman De cada vez que ela parte

 

(autor desconhecido)

De cada vez que ela parte, invento um sorriso, porque meu coração sabe que é lá que ela tem asas, casa, comida e trabalho.

De cada vez que ela parte, meu coração chora devagarinho tentando se convencer que faz parte da vida ver os nossos filhos em busca da vida, fora do país onde nasceram.

Amanhã as crianças vão acreditar que não existe outra cor senão este cinzento que nos amanhece dias após a dia.

Da janela de minha casa, o sol se esconde envergonhado. Os alunos diletos do fascismo tomaram o poder em eleições democráticas e o povo se veste de preto, de novo.

Na taberna, embebedamos a felicidade até que ela caia de quatro. Em todas as esquinas, a sopa do povo. Nenhum cobertor agasalha a nossa dor.

Hoje é dia de festa e eu fiz uma mousse de chocolate, que insiste em morrer no tacho.

encontrar o sorriso nesta dor que alucina/dizer que te amo/neste dia que se incendeia/ser a árvore que resiste /não morrer antes de nascer/ neste país que adormece / enquanto respira.

Quase um ano sem ter nada para dizer, senão tentar manter-se inteira entre paredes opostas.

Descobrir o infinito, onde as paralelas encontram-se, estreitando o intervalo da existência.

Escrever todos os dias, se não ocupasse o tempo a reflectir quantos são os descalços deste país.

Longe de casa nasceram, espontaneamente, tomates cereja. Por baixo deles, numa caixa preta, correm os nossos dejectos. A vida transforma o excesso, em vida. Parte de nós adubo. Parte de nós um intervalo de vida.

Que nasças longe deste país que te virou as costas, filha.

2 Comments

  1. Muito obrigada, Augusta. Ando a sonhar com o faz de conta, como nas estórias do ‘Era uma vez’ – deixo-te estas que me assaltaram a madrugada:
    – Era uma vez um homem que roubava desavergonhadamente o povo. Jamais foi preso nem julgado por ter empobrecido um país. Aluno esperto, que nunca entendeu o erro.

    – Era uma vez um país que foi confundido com um aterro solitário. Nenhum velho sobreviveu para contar a história da desgraça. Os jovens? Emigraram.

    – Era uma vez uma vez um funcionário publico que foi dado como louco. Vestiu-se de Robin Hood e recusou-se a cobrar imposto. Malgrado a prisão, respirou aliviado.

    – Era uma vez um deputado que foi dado como louco. Em consciência votou contra o Orçamento. Malgrado a expulsão, venceu o medo.

    – Era uma vez a esperança, que se alimenta do desejo de um mundo novo, onde tu e eu abraçamos a vontade de ser. Que ela ganhe cultivo neste país.

    Entre estórias e histórias, a vida uiva indignada.
    Beijinho, Augusta

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