GIRO DO HORIZONTE – EQUÍVOCOS – por Pedro de Pezarat Correia

A sociedade portuguesa protesta, em globo. Ninguém escapa, é uma revolta geral. Protesta e manifesta-se. Manifestações cada vez mais ruidosas, mais agitadas, mais participadas, mais agressivas. A tendência é para se agravarem.

Mas há alguns grupos sociais que, quando se manifestam ou quando protestam, despertam atenções e preocupações acrescidas. Entre eles, com destaque, os militares. Por várias razões. Porque os militares, mais do que um estrato social, ou uma corporação, inserem-se numa instituição nacional, alicerçada em valores particularmente sensíveis, como a soberania, a independência, a segurança. E porque são vistos como membros de uma estrutura da nação, último reduto para garantia da estabilidade e do funcionamento da res publica. No caso português acrescidamente, porque ainda perdura a memória dos chamados militares de Abril, que num momento decisivo, arriscando uma intervenção que derrubou a uma ditadura intolerável e bloqueada e pôs termo a uma guerra sem fim e injusta, foram ao encontro dos anseios dos seus concidadãos, abrindo as portas à liberdade, à paz e à democracia.

 Hoje é cada vez mais frequente a invocação da necessidade de um novo 25 de Abril, que no seu sentido mais profundo deve ser interpretado como o regresso aos mais puros valores de Abril, liberdade, paz, justiça social. Mas não falta quem esteja a pensar numa nova intervenção dos militares para pôr termo à crise, ao desastre nacional que a incapacidade do poder político está a tornar inevitável e endémico.

Há nestas angústias compreensíveis alguns mitos, tendencialmente perigosos, que convém esclarecer.

 Enquanto vivermos em regime democrático não há lugar nem legitimidade para intervenção dos militares na política. Argumentarão alguns, por ventura com razão, que em muitos aspectos a democracia já está a ser violada, nomeadamente na legitimidade funcional do executivo, na medida em que a legitimidade genética do seu acesso ao poder foi traída por todas as promessas e compromissos não cumpridos. É verdade. Mas o povo soberano continua a ter nas suas mãos a possibilidade de, quer através da democracia representativa, as urnas, quer através da democracia participativa, a rua, forçar a mudança de um governo em que não confia. Portanto a intervenção militar não é legítima.

Por outro lado não há um mínimo de condições para o sucesso de uma intervenção militar. Dizem os livros e demonstra a experiência – e não disponho aqui de espaço para entrar em pormenores – que é necessário estarem reunidas várias condições para que uma intervenção militar na política tenha sucesso. Condições que estão hoje muito longe de asseguradas. Logo a intervenção não é viável.

É certo que o mal-estar latente no seio da instituição e a consciência da calamidade que se abateu sobre muitos dos seus compatriotas é o campo onde podem germinar os pretextos que façam emergir aquelas condições. E quando são os próprios responsáveis do poder que não se cansam de invocar que Portugal perdeu soberania, que o estado perdeu liberdade para decidir sobre as grandes opções, está-se a tocar nos tais valores a que os militares são muito sensíveis. Mas é absolutamente irrealista estar a invocar a memória de Abril para alimentar a esperança de uma intervenção dos militares. Os militares de Abril e o sentido progressista e humanista que deram ao 25 de Abril foram produto de uma geração muito específica, de um caldo de cultura que fermentou numa época, numa guerra, numa sociedade e numas forças armadas intimamente nela mergulhadas. Os militares de Abril ainda vivos estão afastados do serviço activo e não têm qualquer capacidade de intervenção militar. E os militares actualmente no activo não são supostos terem algo a ver com a mentalidade da geração de Abril. Então a intervenção é um equívoco.

As preocupações que os militares vêm evidenciando têm sido predominantemente de natureza sócio-profissional. E se é certo que também os militares do MFA vieram de um movimento dos capitães que começou por ser movido por razões corporativas a verdade é que houve condições para que nesse ambiente de contestação o movimento adquirisse motivações de natureza social e política. Também hoje as reivindicações podem, por incidentes fortuitos, ser contaminadas por razões de ordem política. Por exemplo a forma como o poder vier a reagir e confrontar-se com as manifestações e agitações que certamente virão a agravar-se. Já há sinais inquietantes. As contradições e a realidade da sociedade portuguesa de hoje têm muito mais paralelismos com as fragilidades da democracia do final da I República do que com o estertor da ditadura do final do Estado Novo e da guerra colonial. Ou seja, um golpe militar nas condições de hoje tenderá a aproximar-se mais do 28 de Maio do que do 25 de Abril. Por isso a intervenção é um perigo.

Nas instâncias superiores do Estado certamente que nada disto é desconhecido. E nem me admiraria que até haja por lá quem esteja interessado em que as coisas corram nesse sentido. Custe o que custar…

 22 Outubro de 2012

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