Os Ciclos “Liquidacionistas”: A antiquada teoria dos ciclos reais da actividade económica e a Grande Depressão, por BRAD DELONG
Selecção e tradução por Júlio Marques Mota
Júlio Marques Mota fez também a introdução a este texto, em SOBRE O LIQUIDACIONISMO DE ONTEM NA AMÉRICA E DE HOJE NA EUROPA, publicado em A Viagem dos Argonautas, dias 22 e 23 , às 22 horas.
(continuação)
Parte II
A Grande Depressão e a Perspectiva “liquidacionista”
Desde o fim do verão de 1929 até a inauguração da política de Roosevelt, os indicadores macroeconómicos assinalavam uma necessidade profunda e urgente de expansão. O mercado de acções em termos nominais diminuiu a uma taxa de 35 por cento ao ano, e de 25 por cento ao ano em termos reais. O nível de preços e o volume global da moeda caíram a uma taxa de 8 por cento ao ano. Enquanto uma fuga para a qualidade levava a que as taxas de juros sobre os títulos do governo e sobre o papel de curto prazo emitido pelas empresas de crédito de valor reconhecido pelos mercados descessem ambas, as taxas de juros nominais a que as grandes empresas poderiam contrair empréstimos de longo prazo subiam (Temin, 1974).
A Política Económica sob Hoover
Com este declínio, que levou a que o PIB per capita e em termos reais diminuísse para cerca de 40 por cento abaixo do valor que tinha atingido em 1929 e, como vimos, com o aumento do desemprego, que veio a atingir mais de um quarto da força de trabalho, o governo não tentou sequer apoiar e aumentar a procura agregada. A única acção de política orçamental expansionista foi realizada com Veterans Bonus, o que foi aprovado mas com o veto do Presidente Hoover (Chandler, 1970). À parte isto, o excedente orçamental de pleno emprego não caiu ao longo de 1929-1933 (Brown, 1956).
O Federal Reserve também não usou as operações de open market para, pelo menos, manter a oferta nominal de moeda e em vez disso levou a que diminuísse o seu montante pela política monetária restritiva seguida. Em vez disso de uma política monetária expansionista, a utilização sistemática verdadeiramente significativa de operações de open market que foi feita foi-o sim mas noutra direcção: foi para aumentar as taxas de juros e desencorajar as saídas de ouro depois da Grã-Bretanha ter abandonado o padrão-ouro no Outono de 1931 (Temin, 1974). A inacção do Federal Reserve não surgiu porque os seus membros não entendiam as ferramentas da política monetária. Eles tinham-nas utilizado frequentemente na década de 1920 e novamente no Outono de 1931 (Friedman e Schwartz, 1963). A inacção do Federal Reserve não surgiu simplesmente devido há necessidade que havia de defender o padrão-ouro. Os Estados Unidos em 1931 detinham cerca de metade das reservas mundiais de ouro e estavam pois mesmo muito longe de se encontraram numa situação em que uma política monetária errada poderia desencadear um bem-sucedido ataque especulativo sobre a adesão dos EUA ao padrão-ouro
O Federal Reserve sabia assim o que estava a fazer: ele estava a deixar que o sector privado enfrentasse a Depressão bem à sua maneira. Ele viu a tarefa do sector privado como a “liquidação” da economia americana. E ele temia que a política monetária expansionista pudesse impedir o necessário processo de reajustamento do sector privado. Contemplando o naufrágio da economia do seu país e tendo também em vista o naufrágio da sua própria carreira política em retrospectiva, Herbert Hoover escreveu amargamente sobre aqueles que na sua Administração o tinham aconselhado à inacção durante a enorme contracção económica que ocorreu com a Grande Depressão:
Deixem estar o que está e como está dirigido pelo Secretário do Tesouro Mellon… fazer sentir que o governo deve manter as suas mãos de fora e deixar a depressão liquidar-se a si-mesma. O O Secretário de Estado Mellon conhece apenas uma fórmula: ‘ liquidar o trabalho, liquidar os mercados bolsistas, liquidar os agricultores, liquidar o sector do imobiliário’…Ele mantinha mesmo a opinião de que até o pânico não era uma coisa completamente ruim. E afirmava: assim será estar a limpar a podridão do sistema. O elevado custo de vida e o elevado nível de vida irão descer . As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida com muito mais moralidade. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras vão-se distanciar dos destroços que são as pessoas menos competentes ‘
A teoria económica durante a Administração Hoover
A administração Hoover e o Federal Reserve tinham claramente uma enorme falta de vontade em utilizar a política monetária e orçamental para sustentar a procura agregada durante o período da Grande Depressão, posição esta que era apoiada pelos mais eminentes economistas da época . De Harvard, Seymour Harris argumentou que exactamente porque o sistema bancário estava próximo do colapso não havia então nenhuma razão para que o Federal Reserve comprasse títulos para injectar liquidez: ” as operações de open market não são o método mais eficiente para enfrentar as … falências dos bancos, da mesma forma que considerar que a maneira correcta de preencher inúmeros pequenos orifícios na superfície da terra é então inundar a terra com água ” (Harris, 1934; p. 104). Joseph Schumpeter alegara, por seu lado, que havia uma “presunção contra as medidas de reparação que funcionam através do aumento de liquidez e do crédito… políticas deste tipo são particularmente aptas a… criarem problemas adicionais para o futuro”
Schumpeter (1934) dá a mais clara exposição literária da linha “liquidacionista” expressa pela ideia em que Mellon acreditava assim como outros decisores das políticas económicas seguidas e para além de eminentes economistas como Hayek (1931, 1935), Harris (1934) e Robbins (1934). Schumpeter começa com a observação de que o processo e o trajecto do desenvolvimento económico nunca é sem conflitos nem é sempre sem atritos. Os investimentos e as empresas são sempre apostas sobre o futuro. Às vezes essas apostas falharão e o futuro real que vier a acontecer será um outro em que certos investimentos não deveriam ter sido feitos e em que certas empresas não deveriam ter sido criadas. O melhor que pode ser feito em tais circunstâncias é encerrar os processos de produção que acabaram por ter sido baseados em suposições sobre as exigências futuras que não se vieram a verificar ou então que se tornaram obsoletos pelo desenvolvimento tecnológico. A liquidação de tais investimentos e actividades liberta factores de produção de utilizações não rentáveis ou menos rentáveis para utilizações mais rentáveis; eles podem então ser transferidos e adaptados a outras actividades da economia tecnologicamente mais dinâmicas; mas sem a liquidação inicial, a reafectação dos factores não poderá ocorrer.
Conclui-se então, diz Schumpeter, que as depressões são esse processo de liquidação e de preparação para a reafectação dos recursos dissponíveis. Segundo o ponto de vista de Schumpeter, “as depressões não são simplesmente os males, que podemos tentar suprimir, mas… formas de algo que tem de ser feito, ou seja, um ajustamento para… a mudança.” Essa função socialmente produtiva das depressões cria “a principal dificuldade” que enfrentam os arquitectos e os decisores das políticas económicas aplicadas. Além do mais “muito do que seria eficaz para remediar uma depressão seria igualmente eficaz na prevenção ou anulação da possibilidade desse ajustamento” (Schumpeter, 1934, p. 16). O processo de crescimento económico dinâmico exige que os subutilizados factores de produção mostrem a sua disponibilidade nos mercados dos factores. As políticas que estimulam a procura agregada em recessões mantêm os factores de produção aplicados nas actividades que não produzem valor superior ao seu custo social e assim mantêm os mercados de factores a não mostrarem a sua disponibilidade potencial de recursos produtivos disponíveis para uma melhor reafectação.
Schumpeter vai assim bem longe na sua argumentação considerando mesmo que a política monetária não pode permitir aos decisores escolher entre depressão e não depressão, mas sim entre depressão agora e uma maior depressão mais tarde. Na sua opinião a “inflação… levada bem longe, criadas as condições para ser alta, sem dúvida que levaria a que a depressão rapidamente se pudesse transformar numa situação de prosperidade virtual falsa, tão familiar na Europa do pós-guerra, mas…, por fim, desembocaria num colapso ainda bem pior do que aquela situação de crise a que foi chamada para resolver, bem pior portanto do que a situação que pretendia curar. (Schumpeter, 1934, p. 16). Portanto, segundo a análise de Schumpeter “… devemos então acreditar que a recuperação é somente correcta se resulta de si-mesma, da sua própria cura. Segundo esta linha de análise, qualquer melhoria que seja apenas devida ao estímulo artificial deixa a parte do trabalho que deve ser feita pelas depressões por fazer e acrescenta, à parte remanescente do ajustamento ainda por fazer um novo desajustamento assim introduzido pela política económica aplicada e que deve, por sua vez, ser liquidado , ameaçando assim a actividade económica com uma outra crise adicional [pior] “(Schumpeter, 1934, p. 20).
Desde que o desajustamento básico esteja ultrapassado, os investimentos e os conjuntos de actividades que se mostraram ser socialmente improdutivos e em situação de necessidade de liquidação, o “problema está fundamentalmente ligado não a questões de dinheiro e de crédito.” E assim as estimulantes “políticas monetárias… são particularmente aptas a manter e a acrescentar desajustamentos novos aos existentes e gerar problemas adicionais para o futuro” (Schumpeter, 1934, p. 20). Mais ainda, palavras como “estimulantes” carregam um significado especial neste contexto: se as acções do sector privado levarem a uma queda na quantidade nominal de moeda, por exemplo, então uma tentativa de sector público para neutralizar as consequências de tais acções do sector privado pela injecção de reservas suficientes para manter a constante a quantidade de moeda seria considerada uma medida “estimulante”.