REFLEXÕES SOBRE A MORTE DA ZONA EURO, SOBRE OS CAMINHOS SEGUIDOS NA EUROPA A CAMINHO DOS ANOS 1930

Uma viagem pelos países da Europa atingidos  pelo  escândalo  da carne de cavalo

Por Júlio Marques Mota

Uma peça dedicada ao meu amigo Gama, à sua égua, às crianças que a montaram

Parte I

Nota introdutória à crise mostrada pela carne de cavalo por magia em vaca transformada e mostrada por outras razões ainda

Já o sabíamos, mas o exemplo é mesmo muito revelador: entre os campos de pasto na Roménia e o prato de lasanha que a minha neta,  Alícia Mota, come  em Coimbra,  esta “carne” terá percorrido  cerca de 6500 quilómetros. Todos os produtos elaborados são transportados sobre  distâncias que representam uma perfeita demência  porque nada se paga de externalidades (poluição, consumo de recursos não-renováveis, acidentes, desgaste da estrada). De resto a empresa  Findus faz bem em sublinhar, e com  que ironia agora isto se lê, que a carne de cavalo em si não faz mal a ninguém.  O problema do nosso ponto de vista não é então o cavalo ou a vaca, é o modelo que isto permite ou que a isto conduz.  O verdadeiro escândalo é este, está aqui, e não é esta a pequena golpada sem verdadeiras  consequências para a saúde, como é o actual caso da carne  de  cavalo e de vaca, agora em discussão, o verdadeiro escândalo é o modelo produtivo e financeiro que está por detrás de tudo isto e que não pode nem deve ser ignorado sob pena de estarmos  a ser cúmplices de crimes contra a sociedade. De criminosos já bastam os que andam pelos governos a  desgovernar esta Europa pela qual e na qual todos nós nos sacrificamos.

Haverá aqui problemas de toxidade especiais? Haverá, possivelmente, mas não é o mais relevante. Relevante é tudo isto ser consentido, e consentido como sistema seja com carne de vaca seja com carne de cavalo. Quanto à toxidade relativamente especifica da carne de cavalo acrescente-se que a presença de fenilbutazona na carne de cavalo  expõe os consumidores de carne de cavalo a riscos para a saúde? A resposta tem a ver com  os efeitos colaterais do  medicamento e da dose que pode ser encontrada na carne. “Fazendo parte da família dos anti-inflamatórios não esteróides, a fenilbutazona apresenta, por um lado, problemas de má tolerância em diferentes níveis (hematológicos, mucosa, rim) e, por outro lado, um risco provavelmente raro de reacções alérgicas agudas com lesões dermatológicas bolhosas”, resume Bernard Bégaud, Professor de farmacologia na Universidade de Bordeaux. Por causa da sua má tolerância e da existência de outros anti-inflamatórios menos problemáticos, a Haute Autorité de Santé tinha dado, em 2006 e, em seguida, em 2011, um parecer desfavorável ao reembolso deste medicamento.

O homólogo britânico de nosso director-geral da saúde quis ser bem menos alarmante: “Se comermos  bifes picados de  250 gramas de 100% cavalo, deverá ser necessário comer num dia  mais de 500 ou 600 gramas para alcançar a dose para seres humanos”, disse Sally Davies. A fenilbutazona foi comercializada sob a forma de comprimidos de 200 miligramas.

Na França, o alimento da Agência de segurança nacional, do meio ambiente e do trabalho tem um método de detecção de fenilbutazona desenvolvido pelo  seu laboratório de Fougères (Ille-et-Vilaine). “O limite de detecção é de 5 microgramas por quilo de carne. Na prática, nunca o encontramos , disse um porta-voz da Agência ao jornal Le Monde .

 O problema do nosso ponto de vista não é então o cavalo ou a vaca, é o modelo que isto permite ou que a isto conduz.  O verdadeiro escândalo é este, está aqui, e não é esta a pequena golpada sem verdadeiras  consequências para a saúde, como é o actual caso da carne  de  cavalo e de vaca, agora em discussão, o verdadeiro escândalo é o modelo produtivo e financeiro que está por detrás de tudo isto e que não pode nem deve ser ignorado sob pena de estarmos  a ser cúmplices de crimes contra a sociedade. De criminosos já bastam os que andam pelos governos a  desgovernar esta Europa pela qual e na qual todos nós nos sacrificamos.

Nesta crise da carne de cavalo  encontramos como pano o de fundo e com que crueldade  este se nos apresenta, o modelo económico e financeiro de base da União Europeia. Que os homens se matem em Atenas, em Portugal, em França agora,  nada impede que o think tank que dá pelo nome de OCDE  continue a destilar o veneno que está a matar a própria Europa, exigindo ainda  políticas de maior endurecimento para o mercado de trabalho, menos benefícios sociais a quem já poucos tem, etc.. Mas a OCDE não é mais do que isso. Uma  instituição  composta por intelectuais neoliberais colocados ai pelos respectivos governos e para produzir o discurso que a estes convém. Pagos para matar, era assim no Far-West, pagos para pensar a execução da  morte lenta dos outros, é assim a versão moderna desse Far-West, é essa a função de que se encarrega agora a OCDE.

Curiosamente a história da carne de cavalo agora vem mostrar várias coisas. Que os cavalos também se abatem sabemo-lo da crise de 1929 e desse filme espantoso que dá pelo nome Os cavalos também se abatem onde as pessoas substituem na  dança da morte,  os  cavalos. E, agora,  com uma outra crise, os cavalos também se abatem na Roménia, na Irlanda, na Inglaterra, por razões diversas, entre as quais, o facto da crise varrer do campo das possibilidades da pequena burguesia o poderem ter o prazer de ter  cavalos. Sai caro ter um cavalo. E para isso já não bastam as isenções fiscais  na Irlanda,  isenções a incidirem sobre os ganhos, sobre os rendimentos obtidos com esses mesmos cavalos. Os rendimentos destes baixam, os valores das coberturas que estes podiam fazer sobre éguas seleccionadas a mais de 100.000 euros cada montadela, cada cobrição,  também se reduzem, ou seja,  nem isso, nem os paraísos fiscais salvam os puros equídeos que para aí transitam e de que a Irlanda é um bom exemplo. Na Irlanda, sublinhe-se, residência fixa de mutos equídeos, dos que correm nas corridas de apostas  e dos que neles apostam igualmente, os rendimentos gerados pelos equídeos praticamente não pagam impostos. Percebe-se então a densidade de cavalos a “residirem”  por estas terras de muita verdura. Muitos deles chegam ao fim da vida  útil, ao fim da vida de rentabilidade alta, bem mais cedo do que o esperado e considerados velhos então, o seu destino com a taxa de rentabilidade a descer têm apenas um sentido, um local de paragem vivos: o matadouro para o abate. É assim na Inglaterra, é assim na Irlanda, é assim numa das fileiras desta crise da carne de cavalo por magia em carne de vaca transformada.

Sobre isto, não sei  o que dirá o meu amigo Gama que apenas levou a minha neta duas vezes a andar na sua égua. Prometido estavam mais vezes, mas a crise alargou, aprofundou as mazelas da vida de cada um e a crise impôs  o seu diktat à sua égua: vendida por falta de meios para a manter. Não sei se terá tido o destino desta égua ou não. O meu amigo Gama também não saberá, então.

Para além dos cavalos a história no seu significado vai bem mais longe. Milhares de quilómetros percorridos para chegar genericamente ao prato de quem tem pouco dinheiro para boa comida poder comprar. Com que cinismo pode ser entendida a afirmação  de Erica Sheward da Universidade de Greenwich (Reino Unido) quando nos diz  : “Como é que os consumidores que compram  estes produtos de carne picada a  33 cêntimos podem acreditar que são feitos à base de carne de vaca ?” Mas ponha-se a questão de uma outra maneira, que é aquela a que verdadeiramente Erica Sheward   se queria referir, como é que os especialistas europeus conseguiam pensar que um prato  de carne de vaca pode vendida a este preço?  Especialistas? Onde?

Na Europa do Estado mínimo de que nos fala agora também o clown Passos Coelho  serão necessário  especialistas para assegurar a qualidade da comida dos pobres?  Para darmos um outro exemplo, haverá especialistas e inspectores do mercado de trabalho a estudar a confirmar o enquadramento legal de quem trabalha, as suas condições de trabalho, haverá especialistas e inspectores a analisarem os horários de trabalho de quem trabalha, a  estudar, a analisar a conformidade das remunerações de trabalho às tarefas exercidas? Não, claramente que não.   Haverá especialistas, inspectores,  a analisarem a problemática  dos contratos de trabalho  temporários, a estudar a rotação dos trabalhadores jovens  usados como carne de canhão, e de cavalo  já agora , no mercado de trabalho,  rotação esta que leva a que muitos deles enquanto jovens nunca conhecerão o que é um contrato de duração indeterminada? Haverá?  Não, e isto porque são também uma outra espécie  de carne de cavalo, de cavalos a abater, igualmente.

Mas olhemos para o esquema abaixo, que marca apenas um dos circuitos e pasme-se. Uma carne servida em Coimbra  é encomendada em França,  pela Findus, empresa sueca, em Boulogne-sur-Mer a uma empresa de Metz , a Comigel, situada a nordeste de França.  A empresa Comigel transfere esta encomenda para a sua filial  Cappellen no Luxemburgo e aqui encontramos já uma característica desta União Europeia dos grandes capitais e por eles governada, sob a capa de Durão Barroso, Rompuy, Draghi e outros da mesma estirpe: a presença constante dos paraísos fiscais, pois o Luxemburgo é um deles, pois ser agente de intermediação dos grandes capitais é mais rentável  hoje do que ser um país de siderurgias como o Luxemburgo  já foi na Europa industrial de então e por isso, batido pela concorrência passou a uma outra fileira de produção: a da paraíso fiscal, especialista em… Mas um paraíso fiscal  só por si não chega. Cappelloni no Luxemburgo encomenda agora a carne à empresa Spanghero no sul de França. Mas Spanghero vai comprar a carne, abastece-se então onde? Num paraíso fiscal e continuamos a seguir  então uma rota estranha, que poderemos chamar rota de optimização fiscal ou de maximização da fraude fiscal que todos haveremos depois de pagar pelos nossos silêncios nisto tudo.  Encomenda a carne a Chipre. E estamos agora em Chipre, “país” onde dominam as máfias russas e é essa a sua característica de paraíso fiscal. Negoceiam estas em  quê? Não sabemos. Então e porque não mais um salto nesta corrida à optimização fiscal, que tal uma outra corrida a um outro paraíso fiscal, a Holanda? Paraísos fiscais nesta Europa do bando dos quatro é coisa que não falta. Senão vejamos: Áustria, Bélgica, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, aos quais se devem juntar Chipre e Malta, e depois, S. Marino, Madeira, Liechenstein, Mónaco, Andorra e todas as ilhas que rodeiam o maior paraíso fiscal do Mundo, Londres.   E era da Holanda, finalmente, meu Deus, que saí a encomenda da carne ao produtor, a Roménia.  E creio mesmo que a Holanda é o sítio mais conforme para este tipo de operação. Com efeito nos meios da vigarice, nos meios da alta finança  a Holanda é ela conhecida pela sandwiche, ou seja, a parte rica, a parte suculenta,  de uma sandes, a parte  que está no meio das duas metades de pão. Um exemplo. Google para fugir aos impostos utilizou a técnica da sandwiche para pagar apenas 2,4% dos seus impostos sobre os lucros obtidos fora dos Estados Unidos. Como? Uma filial sua emite as vendas de bens e serviços Google para a Europa, Médio Oriente e África. Deve finalmente pagar os royalties possivelmente  elevados a uma outra filial do grupo, situada esta na Irlanda mas com a sua direcção geral nas Bermudas. Como resultado este primeira filial deduz os royalties pagos à segunda, o que reduz os lucros havidos na Irlanda enquanto a filial das Bermudas  não paga praticamente nada, pois está num puro paraíso fiscal.  Mas pela lei irlandesa é preciso alguém pelo meio e é aqui que surge, uma outra filial  de Google, na Holanda. É esta filial que transmite os lucros para as Bermudas,  e é por isso que a Holanda assume o estatuto de sandwiche, a sandwiche holandesa , uma estrutura fiscal de ligação entre duas outras estruturas fiscais. Como um outro pequeno exemplo sobre a Holanda, em 2011 e segundo o Banco central da Holanda o país teria realizado  3.700 milhares de milhões de euros em investimentos directos no estrangeiro  em 2009, ou seja, mais que os Estados Unidos. Como é evidente, trata-se de investimentos  no papel, para os lucros da nossa sandwiche!

(continua)

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